Conhecimento

Sociedade ainda reage mal à educação sexual, que é fator de proteção da infância

No Brasil não tem ainda diretrizes claras em relação à maneira como o tema deve ser tratado em sala de aula

Sex, 30/07/21 - 00h00
Especialistas apontam que a educação infantil funciona como fator de proteção na infância | Foto:

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“Menina denuncia padrasto após palestra de educação sexual”. “Após aula de educação sexual, garota denuncia avô abusador aos professores”. “Estupro de seis crianças é revelado após palestra em escola”. Esses são alguns dos exemplos de manchetes que, eventualmente, repercutem na mídia nacional e escancaram uma realidade de violações silenciosas contra crianças e adolescentes em grandes e pequenas cidades nos quatro cantos do país. Notícias que chocam por evidenciarem que, na maioria das vezes, os abusadores são pessoas próximas da família ou familiares das vítimas. Mas, também, reportagens que demonstram como a educação integral em sexualidade pode funcionar como uma barreira contra crimes sexuais, facilitando o reconhecimento dessas situações e emprestando autonomia para que crianças e adolescentes possam denunciar agressores. 

Contudo, apesar das evidências, dos estudos e das recomendações de autoridades sobre a efetividade do conhecimento para a proteção da infância – seja contra abusos ou contra outras intercorrências, como a gravidez não planejada na adolescência e a contração de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) –, falar em sexo e em sexualidade na instrução formal ou doméstica, mesmo que indiretamente, é ainda um tema espinhoso no Brasil.

Recentemente, por exemplo, foi noticiada a ação de um grupo de pais que pediu à direção de uma escola particular de São Paulo que substituísse o material didático usado para aulas de inglês. O livro que causou incômodo aos tutores era uma versão em quadrinhos do “Diário de Anne Frank”, obra que é considerada Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e que narra a história real de uma menina judia que deixou dois diários com suas memórias antes de ser morta, em 1945, no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Aos olhos dos pais dos estudantes, causou embaraço uma suposta “erotização da personagem”. 

O episódio ilustra bem como a menor menção a temáticas que falem do corpo é suficiente para causar furor e comoção. Não por outro motivo, no ano passado, as atenções se voltaram para o filme “Mignonnes” (“Lindinhas”, título da obra no Brasil), distribuído pela Netflix. Naquele agosto, antes da estreia, a provedora de streaming chegou a retirar de circulação um cartaz de divulgação após ser acusada de, sob pretexto de denúncia, promover a erotização da infância.

Depois do lançamento, nos Estados Unidos, grupos se organizaram e promoveram mal sucedidas campanhas exigindo que o conteúdo fosse retirado do catálogo da plataforma. No Brasil, o secretário Maurício Cunha, da Secretaria Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, pasta vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chegou a solicitar, também sem sucesso, a suspensão do filme. 

As reações ao quadrinho “Anne’s Frank Diary: The Graphic Adaptation” e ao filme “Mignonnes” expõem a dificuldade de se colocar em prática, sobretudo nas salas de aula, um sistema de educação que seja capaz de promover conhecimento sobre o corpo e o sexo de forma natural, positiva e sincera. Para muitos pais, ao contrário de instruir, a formação escolar poderia aguçar, precocemente, o interesse das crianças para o sexo. Há também aqueles que, partindo de um viés conspiracionista, acreditam que essas disciplinas seriam mais “ideológicas” do que propriamente educativas e que teriam como objetivo estimular a homossexualidade e a transgeneridade. Mitos que, aliás, não sobrevivem à realidade dos fatos.

Em entrevista a O TEMPO, quando comentou a repercussão do filme “Mignonnes”, a psiquiatra da infância e adolescência Luciana Nogueira de Carvalho lembrou de estudos que reforçam como a educação integral em sexualidade, ao contrário de estimular, tende a ser uma barreira à iniciação sexual precoce à medida que demonstra para crianças e adolescentes que o sexo, para ser funcional, exige preparo e responsabilidade. É o contrário do que acontece a muitos jovens que, por não ter acesso a uma instrução sólida, iniciam sua vida sexual mais cedo.

Na mesma ocasião, o especialista em docência na educação infantil e pedagogo Sandro Vinicius Sales dos Santos salientou que, diferentemente do que faz crer a desinformação, a educação sexual nada tem a ver com doutrinação ou com promiscuidade. “É o oposto disso. É um processo de autoconhecimento, que envolve a descoberta de limites e de possibilidades de relações com os outros, com os iguais, com os diferentes, mas, sobretudo, consigo mesmo”, afirma.

Gravidez na adolescência. Em 2020, a cada mil brasileiras entre 15 e 19 anos, 53 tornaram-se mães, indica o relatório do Fundo de População das Nações Unidas (UFPA), lançado neste ano. Com esse índice, o Brasil se manteve acima da média mundial de casos de gravidez na adolescência. Em todo o planeta, em média, a cada mil jovens, 41 são gestantes.  

Círculo vicioso. A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) alerta que os índices expõem um problema de saúde pública que precisa ser encarado, afinal “a gravidez precoce induz a um círculo vicioso de pobreza e baixa escolaridade”. 

ISTs. A Escola de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) reforça o papel da formação integral em sexualidade como instrumento fundamental de proteção à saúde ante dados alarmantes de Infecção Sexualmente Transmissível (IST) entre os jovens. Para ilustrar a situação, a instituição traz dados apurados pelo projeto PrEP 15-19 Minas, que avalia o uso de um método preventivo conhecido como Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP) e que identificou que 13,64% dos jovens entre 15 e 19 anos que fazem parte do público-alvo do projeto testaram positivo para sífilis. 

Abuso. “Falar sobre educação sexual se tornou ainda mais importante agora, na pandemia, que restringiu a convivência ao ambiente familiar, e já se sabe que a maior parte desse tipo de abuso ocorre dentro de casa”, reforça a Escola de Medicina da UFMG em um artigo, citando que, de acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, 73% dos abusos surgem dentro dos lares das vítimas. Pais e padrastos são os principais suspeitos em 40% das denúncias recebidas.

Deserto informativo 

O preconceito e o tabu que orbitam a temática tornam ainda mais difícil que a educação integral em sexualidade seja, efetivamente, posta em prática no país. Vale lembrar que, no Brasil, a Base Comum Curricular, documento que determina o conjunto de aprendizagens fundamentais da educação básica, apenas recomenda que o assunto seja discutido, de forma transversal, a partir do oitavo ano do ensino fundamental. Portanto, o país não tem ainda diretrizes claras para o tema. 

O cenário é o completo avesso do que recomendam especialistas, como a consultora em sexualidade Aline Bicalho. Para ela, idealmente, as discussões deveriam ser outras, pois a efetividade da educação sexual como fator de proteção da infância já é, há muito, um consenso entre estudiosos. 

Aline destaca que, embora muitos associem aulas que têm como foco a sexualidade como algo restrito a tópicos da biologia, como reprodução e ISTs, o assunto é mais amplo e diz respeito a situações do cotidiano. Devem entrar em pauta, por exemplo, temas como consentimento e diversidade. “Nós não somos seres apenas biológicos. Somos muito mais complexos do que isso. Nossas relações são baseadas em afetividade, em proximidade, em respeito, em autoestima… E esses assuntos devem ser abordados tanto em casa como na escola. Até porque, se não educamos nossos filhos, eles vão buscar essas informações em outras fontes, seja na rua, na internet ou entre amigos, o que não é o ideal”, sinaliza. 

A consultora destaca que essas conversas deveriam acontecer com naturalidade. Não se trata, portanto, de ter uma conversa cerimoniosa e isolada, mas de se mostrar aberto ao diálogo constantemente. “Alguns desses fundamentos, nós podemos ensinar por diversos meios. Quando dizemos para a criança que ela não precisa emprestar o brinquedo dela, mas que as outras crianças também só vão emprestar se quiserem, estamos falando sobre consentimento, estamos ensinando-as a entender que não é não”, assegura. 

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