Esotérico

Versos de bem-querer acalentam

Mulheres do Vale do Jequitinhonha personalizam tradição cultural em tempo de pandemia

Por Da Redação
Publicado em 07 de julho de 2020 | 03:00
 
 
Érica Riani/Divulgação Foto: Érica Riani/Divulgação

 “A folha da bananeira balanceou e quebrou no meio, vou buscar meu papagaio que tratou de vir e não veio. Fica em casa, fica em casa pela sua proteção e, por favor, não se esqueça de fazer uma oração pedindo à divindade cura e libertação”. Esta é uma de dezenas de cantigas que fazem parte da tradição cultural do povo lindo e alegre do Vale do Jequitinhonha, nas festas, nas celebrações de colheita, nos encontros e nos nascimentos das comunidades.

Tradição que se aprende desde miúdo em casa ou com os anciões das comunidades. Entremear esses cânticos com versinhos é uma arte conhecida como “jogar versos” e que desde o início da pandemia ganhou lonjura por meio do projeto Versinhos do Bem-Querer criado pela ONG Ajenai, de Diamantina.  

“O projeto foi pensado para gerar renda para as comunidades durante o isolamento social. São pessoas que moram em regiões de difícil acesso e com poucos recursos. Agregamos valor a esse saber e valorização de seu saber e sua arte”, comenta Viviane Fortes, coordenadora do projeto Mulheres do Jequitinhonha e do projeto Versinhos de Bem-Querer, ambos da ONG Ajenai.

O retorno tem sido excepcional e não poderia ser diferente. As ‘jogadoras de versos’ têm um talento de improviso nato e criam versos que emocionam, motivam e homenageiam. Os pedidos são feitos pelo site www.versinhos.com.br. A pessoa informa o nome de quem vai receber o verso e conta um pouco sobre as qualidades que deseja ressaltar em quem vai receber o mimo. O pedido é encaminhado para uma das ‘jogadoras de versos’ que vai criar e enviar o áudio. Os versinhos personalizados custam  R$ 26,00.

“Ao comprar um versinho, você entra na brincadeira e ajuda a espalhar a alegria e a beleza da cultura do Vale. E ainda contribui para que essas famílias possam passar por esse período de pandemia com maior segurança. Não tem como não se emocionar com a simplicidade, pureza, delicadeza e amorosidade dos versinhos. As pessoas nos retornam agradecendo emocionadas e impactadas com a força e beleza dessa cultura popular”, conta Viviane.

Alguns depoimentos dizem o seguinte: “Essas mulheres cantam com o coração”. “É muita emoção, beleza, delicadeza, carinho”. “Os versinhos traduzem exatamente a pessoa. O mundo está precisando disso”.

E Marli de Jesus Costa, 41, moradora da comunidade Curtume, que pertence a Jenipapo de Minas, recebeu a incumbência de compor versinhos para ninguém menos que Helena Buarque de Holanda. Aproveitou o ensejo e ‘jogou versos’ para o pai, Chico Buarque de Holanda.

“Vou tirar minha despedida no pé de alecrim, hoje eu canto pro Chico com muito carinho. Ele é compositor, outro igual ele não tem, parece um cravinho roxo no biquinho do quenquém. Ele é amigo do Lula, ama o povo brasileiro. Esse é o Chico Buarque, é um homem verdadeiro. A lua já vem saindo de trás do pé de fulô, não é lua não é nada é Chico puro amor. Joguei meu barquinho n’água com carinho e muito amor. Chico você é bonito cai que nem sereno na flor”.

O que ela não contava é que o compositor respondeu com uma cantiga: “Durante a noite inteira escuto como quem sonha a Marli bordadeira, lá de Jequitinhonha”. E houve tréplica da Marli: “Bonito o Chico falou, bonito eu vou responder, um amor fora do outro faz o coração doer”.

Marli conta que depois desse projeto sua vida mudou bastante. “Os versos fazem bem para as pessoas que escutam e se emocionam. Eu dou graças a Deus. É preciso saber rimar, combinar as palavras e cantar em verso a personalidade da pessoa”, ensina.

“As pessoas estão sem saber como será o dia de amanhã”

“Viva são Pedro, santo Antônio e são João. Viva o jornal “O TEMPO” trazendo informação”. O versinho saiu de improviso e foi criado por Nalva Aline de Jesus Sousa Martins, 29, educadora social e moradora de Jenipapo de Minas, no Vale do Jequitinhonha, uma das mulheres que fazem parte do projeto Versinhos de Bem-Querer.

“Canto com o coração e, por meio dos versinhos, procuro alegrar quem recebe, pois sei que as pessoas estão com o coração triste, aflitas, preocupadas, sem saber o dia de amanhã”, diz Nalva, que escolhe as músicas em função do teor da mensagem.

“O versinho que mais me emocionou foi o de uma pessoa que desejou agradecer o carinho da babá pelos seus filhos. O improviso leva em conta a mensagem, que pode ser para alegrar, tirar a pessoa da depressão, da solidão. As pessoas estão muito mexidas com o coronavírus. Procuramos levar um alento”, conta. (AED)

Versinhos retratam histórias e exemplos de vida

Kárem Antônia Ferreira é uma jovem de 19 anos, moradora de Ribeirão de Areia, município de Jenipapo de Minas. “Comecei ainda adolescente nas fogueiras e encontros. Amo cantar músicas tradicionais e também criar e faço parte do Coral Ribeirão de Areia. Os versinhos têm ajudado as pessoas neste momento de pandemia, há muitos idosos e pessoas solitárias que precisam de um alento. Fico especialmente emocionada quando crio para avôs, pois perdi duas avós recentemente. Fico muito gratificada quando recebo o retorno das pessoas. É maravilhoso”, conta.

Grace Matos, 37, mora em Araçuaí. “Jogar versinhos é uma bênção, e com o projeto estou tendo renda, pois sou mãe do Orfeu (8 anos) e da Valentina (7 anos). Este é um saber tradicional que faz parte de nossas vidas. Jogo versos com amor, mas sou muito chorona e me emociono com os retornos e a gratidão das pessoas”, diz.

Um versinho encomendado que a marcou foi feito para uma moça que foi deixada novinha em um abrigo, saiu de lá aos 18 anos e é advogada. “Atualmente, ela luta contra um câncer raro, mas nunca mostra desânimo. Fiquei muito sensibilizada”, comenta. (AED)