Fabricio Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

Comício de Deus

Publicado em: Dom, 19/01/20 - 03h00

Mineiro respeita a morte. É uma desfeita imperdoável não ir ao enterro. 

Não se brinca com o sofrimento, não se faz piadas com as fragilidades alheias. É a primeira regra que deve ser acatada por quem quer morar no Estado.

Na tempestade, a casca da árvore é mais forte e serena. Escolhe-se, então, a melhor roupa para o desenlace, com o capricho de uma derradeira festa. 

A despedida enche como um comício. Convocam-se os conhecidos por telefonemas e mensagens, formando um palanque do céu na terra, pelo voto de entrada do finado ao paraíso. 

Não existe acontecimento mais triste do que não ter nem seis pessoas para carregar as argolas do caixão. Há uma precaução para que isso não aconteça com ninguém, desafeto ou amigo. 

A morte é o nascimento no andar de cima, para esse povo altamente religioso, que capricha na celebração e na encomenda do corpo. 

O caixão ao alto do féretro torna-se um livro para se aprender alguma coisa. Que seja, pelo menos, para aprender a ficar calado e rever como tem sido a sua compaixão com os limites dos outros. 

Alguém da família se vai e abre-se um feriado mineiro. O mundo para, o emprego para, o relógio-ponto para, guarda-se a arrogância no bolso, joga-se o veneno da maledicência fora, as desavenças têm sua sagrada trégua, quem não se fala há anos conversa com fluência e naturalidade, quem nunca mais rezou começa a cantar ave-maria, as condolências superam pensamentos egoístas e particulares, há uma solidariedade acima de tudo dominando os laços, a única premissa é prestar socorro. 

As palavras são de menos, as ações é que importam. Mineiro transparece carinho cozinhando para a família enlutada ou dando carona para algum trajeto ou entretendo as crianças de colo. Mostra-se totalmente disponível para ajudar. Habilita-se a doar o seu tempo, homenageando o sangue perdido com a sua vida. 
Vem gente com doces e marmitas, vem gente com sucos e águas, vem gente com talão de cheque para se oferecer a repartir os encargos da funerária. 

Mineiro é solidário na doença e no desfecho, ironias não cabem nesse último cuidado. 

O desapego aproxima, qualquer morto é de primeiro grau na dor. 
Dívidas são perdoadas, brigas são extintas, desentendimentos são abolidos: nada de ruim é grandioso o suficiente para impedir o comparecimento. 

Nenhuma desculpa é admitida. Nenhuma justificativa remendará o lapso. 

Perdoa-se faltar a um batismo, esquecer o aniversário, jamais falhar no velório. 

O objetivo é estar presente, mesmo que more longe, mesmo que tenha que embarcar no voo mais próximo, pois a ausência será comentada e criticada durante décadas. Poderá vir a ser persona non grata nas confraternizações afora. 

Enterro é solenidade inadiável em Minas. O momento em que se prova a modéstia mínima da humanidade, com a lealdade sanguínea à flor da pele. 

Cada um coloca um ramalhete na coroa de flores, derramando gratidão e só lembrando das qualidades daquele que partiu. 

Nem é pela crença de que o fim converte todo mundo em virtuoso, as pessoas são julgadas por Deus, resta aos homens orar pela transição menos dolorida. Que vá em paz, com a lembrança dos seus parentes se amando em torno de seu nome.

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