Fabricio Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

Ficando para tia

Publicado em: Dom, 07/02/21 - 03h00
Ficando para tia | Foto: Hélvio/O Tempo

Há três gerações, mulher que não se casava ficava para tia.  

Prevalecia um condicionamento social feminino para o matrimônio, como se fosse um emprego. Cuidar de um lar, de um marido e gerar filhos representava a única opção dentro da sociedade patriarcal.  

Quem ficava para tia na família mineira terminava por amparar os pais na velhice. Era a última a apagar a luz das pálpebras paternas e maternas. Todos os irmãos saíam de casa e formavam as suas famílias, menos ela, que ancorava os idosos até o último suspiro. A permanência na residência da infância era vista como um castigo por não arrumar um pretendente.  

Hoje casar e não casar não têm importância nenhuma, equivalem-se numa decisão absolutamente pessoal. O mais comum atualmente não é nem se casar antes dos 30 anos, mas já estar separado nessa idade.  

Eu admiro as tias solteiras: revolucionárias, pioneiras, visionárias. Colocaram a sua vida a serviço de uma causa: a liberdade de amar.  

Elas se encontram com 80 anos. São avós emprestadas. E, incrivelmente, mais conservadas do que as amigas desposadas. Menos rugas, menos pés de galinha, mais brilho no olhar, mais autonomia, o que prova que casar errado somente apressa o envelhecimento.

São as únicas da mesma faixa etária que não dependem de ninguém, que moram sozinhas e viajam à vontade. Bem-humoradas, dão conselhos, frequentam cinemas e teatros, guardam canhotos de ingressos e folhetos de exposições e concertos, não reclamam das adversidades, improvisam com facilidade, não precisam prestar contas da própria bagunça ou dos vestidos em cima da cama.  

Não tiveram nenhum homem empacando a sua história ou censurando as suas vontades, ou proibindo a realização de seus sonhos, ou inibindo as suas carreiras.  

Se não fizeram algo, foi porque não quiseram. Não existem culpados pela infelicidade.  

Essas solteironas ganharam a corrida com o tempo, estavam do lado certo desde o princípio, enfileiradas atrás da consciência.   

Donas dos seus próprios narizes e passos a muito custo, com um sacrifício colossal, transformaram o preconceito em elogio.  

Não seguiram o que os outros queriam, não venderam o seu coração para a estabilidade financeira, não entraram num matrimônio por dote, desafiaram as leis e os costumes de uma época pela independência emocional, não forçaram a convivência com um candidato de sobrenome benquisto, experimentaram a paixão independentemente dos resultados, apanharam por desrespeitar a tradição, aguentaram o confinamento no quarto e humilhações e constrangimentos sobre a sua incompetência em conquistar alguém, suportaram, caladas, fofocas e insinuações na rua, ouviram maldições e imprecações dos seus responsáveis como “você só me dá desgosto” ou “não devia ter nascido”, não cederam os seus princípios em nome da comodidade, obedeceram unicamente à coerência da sua privacidade.  

Devemos a paz da vocação para essas tias solteiras, que se mostraram casadas com o amor-próprio, contra tudo e contra todos.

 

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