Falas emocionadas e críticas à gestão do presidente Jair Bolsonaro marcaram o penúltimo dia de depoimentos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura ações e omissões do governo federal na condução da pandemia de Covid-19. Foram recebidas cinco pessoas que perderam familiares para a doença, além de um sobrevivente que está em tratamento com sequelas. O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), destacou que a oportunidade para mostrar uma cara às mais de 600 mil vítimas da Covid-19.

O presidente da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos, que atua com foco nos direitos humanos, também foi convidado e o primeiro a falar no microfone da comissão. Ele disse que “os dois últimos anos foram os mais difíceis da história da nossa geração, sem a mínima dúvida”, com “fatos humilhantes para a nossa democracia e devastadores para o coração”. Ele citou o trabalho dos médicos no enfrentamento do coronavírus e de quem cobrou a compra de vacinas contra a Covid-19 pelo governo.

Indignado, Antônio Carlos afirmou que incompetência, descaso e irresponsabilidade guiaram o Brasil ao longo da pandemia e destacou o que chamou de “falta de empatia” atitudes de Bolsonaro. “O que vimos foi a antítese de tudo o que se esperava de um presidente da República. Jamais o vimos derramar lágrima de compaixão ou expressar profundo pesar pelo povo brasileiro”, disse. Ele acrescentou que, “em dias de fome, doença, morte, luto, em vez de cuidar do povo que o elegeu, [Bolsonaro] se dedicou tão somente a defender seu mandato e garantir sua reeleição”.

Arquivaldo Leite teve a doença e tem sequelas. Ele foi ouvido pelos senadores e relatou que perdeu pessoas próximas para a doença e seguiu o discurso crítico a Jair Bolsonaro. Ele lembrou ações do presidente que descumpriram medidas sanitárias de combate ao coronavírus. “É fundamental o Congresso Nacional constituir leis para efetivamente estabelecer normas preventivas sanitárias para que se garanta que nunca mais um presidente da República vá à rua sem máscara e incentive, enquanto a comunidade científica determina outro procedimento”, pediu.

“Porque existe a legislação atual, que serve para todo cidadão, mas infelizmente o Presidente da República tem feito todas essas provocações, essas ilegalidades, esses crimes, e ainda não tem uma forma, ou melhor, se tem eu não conheço, e se tem não tem sido colocada em prática, para punir, para evitar que esse cidadão presidente da República continue fazendo o que está fazendo. Me parece que ainda não tem uma forma de evitar esse abuso de autoridade. Para mim é o cúmulo do abuso de autoridade o que esse presidente da República tem feito”, acrescentou Arquivaldo.

A enfermeira de Manaus (AM), Mayra Paz, falou em seguida. Ela perdeu a irmã na crise de desabastecimento de oxigênio na cidade no início deste ano e relatou uma visão, também, do que enfrentou na linha de frente. Segundo ela, durante todo o ano de 2020 os profissionais de saúde tiveram que arcar com equipamentos de proteção. “Nós tivemos muitos óbitos, infelizmente perdemos ótimos médicos obstetras, perdemos colegas para depressão, pra suicídio, e isso falo de todas as categorias. Na enfermagem, nós tivemos 82 óbitos – isso registrado, fora os que ficaram sequelados, que ficaram com depressão, que realmente tiveram a saúde mental debilitada”, acrescentou.

Márcio Antônio perdeu o filho de 25 anos para a doença em abril de 2020, no início da pandemia. Hugo era saudável e não integrava o grupo de risco, mas morreu após 16 dias de internação em um hospital do Rio de Janeiro. Em junho do ano passado, ao caminhar pelo calçadão de Copacabana, viu um homem atacar crucifixos que homenageavam as vítimas da doença. “Uma daquelas cruzes representava meu filho”, disse à época. “Quando eu vi aquela cena, eu fiquei pensando: ‘não estou acreditando no que eu estou vendo, não estou acreditando. Isso aí é muito irracional, muita maluquice’”, acrescentou à CPI.

Vestindo uma camiseta que estampava uma foto do filho, Márcio entregou aos senadores da CPI lenços brancos que representam as vítimas da doença no Brasil. Mais cedo, os lenços foram colocados no gramado em frente ao Congresso Nacional. O ato foi promovido pela ONG Rio de Paz e, segundo Márcio, representa “o amor pelos que se foram”. “Eu acho que saio daqui hoje apenas para curtir o meu luto em paz. Sem condenar ninguém, sem culpar ninguém. Eu quero só continuar o meu luto. Eu quero um país de paz. A gente não precisa ter ódio”, finalizou.

Giovanna Gomes tem 19 anos e perdeu a mãe e o pai para a Covid-19. Por conta disso, ela ficará com a guarda da irmã de 11 anos. Ela contou que a mãe havia passado por um transplante de rim e que enfrentar a infecção pelo coronavírus foi “outra tempestade” na vida da família e que o pai foi internado apenas dois dias depois da morte da mãe. Giovanna também culpou o presidente Bolsonaro pela pandemia. “Hoje a gente tem mais de 600 mil vítimas, não é? Mais de 120 mil órfãos. Então, o governo tem responsabilidade por essas vidas”, ressaltou.

“Assim que tudo aconteceu, eu senti dois impactos. Eu e minha irmã, a gente teve um impacto emocional a princípio e, depois, impacto financeiro. Impacto emocional porque, diante do contexto, diante do que aconteceu, a gente não estava bem psicologicamente, assim como a gente não está até hoje”, completou.

Katia Shirlene também perdeu os pais para a Covid-19. “Eu fiz do meu luto uma luta: eu prometi pra mim mesma que eu não ia me calar, que eu ia seguir até o fim”, contou á CPI. Ele relatou que a mãe era beneficiária da operadora de saúde Prevent Senior há 15 anos e que a família “tinha muita confiança” no plano. Hoje, a empresa é suspeita de usar pacientes como cobaias em um estudo sobre o chamado “kit Covid”, com medicamentos sem eficácia comprovada para a doença.

De acordo com Katia, a mãe foi orientada a tomar os medicamentos por meio da telemedicina. “Não fizeram nenhum exame com ela, e acabaram mandando o ‘kit Covid” para ela. Começamos a medicá-la, mesmo sabendo que a gente tinha algumas dúvidas sobre todos esses remédios, mas como você vai falar para uma idosa de 71 anos que confia no convênio que aquele remédio que o médico mandou para ela, para cuidar dela, na cabeça dela, esse remédio não estaria fazendo nada?”, apontou.

Ela relatou o descaso da Prevent Senior ao dizer que, mesmo após levar a mãe em uma situação mais crítica ao hospital da rede, a realização de exames foi negada. A idosa morreu dias depois. Katia também criticou Bolsonaro. “Quando a gente vê um Presidente da República imitando uma pessoa com falta de ar, isso pra nós é muito doloroso. Se ele tivesse ideia do mal que ele faz para a nação, além de todo o mal que ele já fez, ele não faria isso”, destacou.

Flávio Bolsonaro rebate falas contra o presidente da República

Depois dos depoimentos, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente da República, divulgou um vídeo em uma rede social criticando a sessão da CPI. Ele disse que os convidados são militantes e foram escolhidos para atacar Bolsonaro.

“O que estamos testemunhando é algo macabro, triste e lamentável. Pessoas foram escolhidas a dedo para virem à CPI e falarem mal do presidente Bolsonaro. Pessoas com histórico de militância contra Bolsonaro vieram para a CPI com o compromisso de responsabilizar Bolsonaro pelas mortes de seus familiares por conta da Covid e não por conta de Bolsonaro”.

“Isso foi um desrespeito com as 600 mil vítimas desse vírus no Brasil. Bolsonaro fez e continuará fazendo o que está a seu alcance”, completou, elencando ações do governo federal no combate à pandemia. Flávio Bolsonaro afirmou, ainda, que “a CPI está entrando para a história como algo que mancha a imagem do Senado Federal e algo que, certamente, grande parte da população olha com nojo”.

O TEMPO agora está em Brasília. Acesse a capa especial da capital federal para acompanhar o noticiário dos Três Poderes.