Desde o início da pandemia da covid-19, entidades e juristas, além de líderes da oposição, têm demonstrado a intenção de denunciar o presidente Jair Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia (Holanda), por crime contra a humanidade.

O termo existe apenas no âmbito do direito internacional e toda denúncia tipificada como tal tramita apenas no TPI. Criado em 2002, o órgão tem a prerrogativa de julgar quatro tipos de delitos: crime contra a humanidade, agressão, genocídio e crimes de guerra.

Afinal, o que são crimes contra a humanidade?

As regras são regidas pelo Estatuto de Roma, assinado por 122 países, incluindo o Brasil. Segundo a norma, crimes contra a humanidade são ataques sistemáticos e generalizados cometidos por um Estado, governo ou organização contra uma população civil. Pode ser, por exemplo, homicídio de várias pessoas, tortura e extermínio de um determinado grupo civil, assim como permitir escravidão ao negar estruturas de combate a essa prática.

Para ser tipificado como crime contra a humanidade, o ato deve ser deliberado, ou seja, cometido com a intenção ou a ciência dos efeitos que ele irá causar. E sem um alvo específico, fazendo com que a ação atinja toda uma população.

O mestre em direito penal internacional Acácio Miranda lembra que, até hoje, os casos julgados pelo Tribunal Penal Internacional não passam de 10. A maioria ocorreu em nações africanas, como o ex-líder militar congolês Bosco Ntaganda que, durante conflito interno do país, determinou a morte de homens de tribos diferentes da sua. Ele foi condenado a 30 anos de prisão, a maior pena já aplicada pelo TPI.

Qualquer pessoa física pode fazer uma denúncia ao Tribunal. Ela é encaminhada a órgãos de investigação internos e depois analisada pelo procurador, que decide se dá seguimento. Um julgamento prévio define a admissibilidade e, caso seja aceita, o caso vai à análise pelo plenário, formado por 18 juízes (com mandato de 9 anos cada).

Governo Federal

Já é dado como certo que a CPI da Covid no Senado vai denunciar o presidente Jair Bolsonaro ao TPI por crime contra a humanidade. Os senadores receberam, de uma comissão de juristas, um parecer apontando elementos que podem configurar a prática em relação às comunidades indígenas e fatos ocorridos em Manaus-AM.

Segundo a juíza Sylvia Steiner, única brasileira a ter feito parte do Tribunal Penal Internacional, de 2003 a 2016, o grupo concluiu que o governo negou às populações indígenas acesso a medidas primárias de proteção, como acesso à água potável, internação e imposição de barreiras sanitárias. A magistrada aponta uma política de não assistência aos indígenas, o que nas palavras dela “configura, em tese, uma política de ataque a essas populações.”

Em relação a Manaus, Sylvia afirma que não foram atendidos diversos pedidos, enviados pelas autoridades do município, de equipamentos, insumos, oxigênio, e um pedido de intervenção federal no sistema de saúde.

“Ao invés disso, o governo manda equipe para fazer propaganda de cloroquina e lançar um programa de tratamento precoce, ignorando as reais necessidades da população. Depois, via ministro da Saúde, em janeiro, em vez de tomar providências urgentes, foi fazer propaganda da cloroquina E por isso, durante 3, 4 dias, pessoas morreram por falta de oxigênio”, aponta a ex-juíza do TPI. Portanto, segundo ela, houve uma política de governo de usar a população de Manaus como cobaia de implementação forçada do chamado tratamento precoce, acarretando em mortes que poderiam ter sido evitadas.

Porém, Sylvia Steiner pondera que esses elementos não são garantia de condenação. Para isso, seria preciso uma longa investigação pelo Tribunal.

O professor de direito internacional da PUC Campinas e da Unicamp, Luís Renato Vedovato, acredita que o TPI deve receber a denúncia e investigar formalmente Jair Bolsonaro: “Existem falas [do presidente] que indicam um ataque sistemático contra a população civil. Havia a consciência de que pessoas iriam morrer e as sugestões de combate à pandemia não estavam sendo adotadas pelo governo federal.”

Mas Vedovato pontua: “Já a condenação é um caminho longo. Não consigo afirmar que vá ocorrer, pode ser que o governo tenha uma boa defesa e argumente que não havia a intenção de cometer crimes”.

Por outro lado, o mestre em direito penal internacional Acácio Miranda ainda não vê elementos suficientes para investigar e condenar o líder brasileiro: “Para considerarmos crime contra a humanidade, é necessário que haja vontade [por parte do presidente], tem que ser algo deliberado. O Presidente tem que ter feito as ações deliberadamente. Por mais que tenha havido omissões no combate à pandemia e haja questionamentos acerca das ações, ainda não vejo nada contundente que indique a consumação de um crime contra a humanidade.”

Indígenas

Hoje, tramitam no Tribunal Penal Internacional duas denúncias contra o presidente Jair Bolsonaro que focam na atuação do governo em relação aos povos indígenas.

Uma delas foi apresentada ainda em 2019, pela Comissão Arns, e aponta o avanço do desmatamento, a não concessão de demarcação de terras indígenas e estímulos a queimadas. Um dos autores da peça, Belisário dos Santos Junior, afirma que há um “incentivo ao genocídio”.

“Desde o primeiro momento o governo mostra uma política de tratar os indígenas como uma questão menor. Na cabeça do presidente, é um obstáculo ao progresso, ao avanço da soja, à mineração e ao desmatamento irregular. O que a gente denuncia é essa atividade contra os indígenas”, diz Belisário, que é membro da Comissão Arns e da Comissão Internacional de Juristas.