Alê Portela
Advogada, professora, deputada estadual e secretária de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais
Por décadas, o Brasil carregou as cicatrizes do regime militar, um período marcado por cassações arbitrárias, censura à imprensa, repressão violenta a opositores e o silenciamento sistemático da sociedade civil. Os Atos Institucionais (AIs), sobretudo o AI-5, simbolizaram o colapso das garantias constitucionais. Hoje, embora sob uma roupagem democrática, assistimos à reencenação de velhas práticas, agora legitimadas por decisões judiciais que cada vez mais extrapolam os limites da legalidade, invadem competências de outros Poderes e silenciam vozes dissonantes.
A separação dos Poderes, pedra angular de qualquer república saudável, está sendo corroída por uma hipertrofia do Judiciário – que, sob o manto de guardião da Constituição, legisla por decisões monocráticas, determina prisões por “crimes de opinião” e interfere diretamente na política partidária e legislativa. Mandatos são cassados com base em interpretações elásticas da lei. Opiniões são criminalizadas. Redes sociais são censuradas em nome da “democracia”, enquanto o que se pratica é seu exato oposto: a supressão da pluralidade de pensamento.
A atmosfera política que se forma no Brasil é de medo, incerteza e dissimulação. O cidadão comum já não sabe mais o que pode ou não dizer. A polarização atinge níveis alarmantes, e o tecido social se esgarça em uma espiral de desconfiança, ódio e desesperança. O que se vê é um cenário de insegurança jurídica, em que o direito se torna líquido, moldado ao gosto da autoridade de plantão. Não há mais regras claras – só vontades revestidas de autoridade.
Nesse caldo espesso de autoritarismo disfarçado, cresce a violência política. Famílias se dividem. Amizades se rompem. E pior: o brasileiro começa a descrer no futuro, na justiça e na própria ideia de nação. A desesperança é o mais perigoso dos venenos sociais, pois ela prepara o terreno para rupturas. O risco de uma revolta popular, mais cedo ou mais tarde, se torna uma possibilidade concreta. E, com ela, a semente do separatismo, da dissolução da República, começa a germinar em setores que já não se veem representados por um Estado que os ignora ou os persegue.
Ao mesmo tempo, enquanto a sociedade honesta trava uma batalha desigual por dignidade, o crime organizado se institucionaliza. Com proteção velada do próprio Estado, infiltra-se em setores da economia formal, financia campanhas políticas, se camufla em partidos e influencia decisões estratégicas da República. A fronteira entre o lícito e o ilícito se dissolve perigosamente. O crime deixa de ser exceção e passa a ser estrutura de poder.
É nesse ponto que se revela o aspecto mais cruel da crise brasileira: a dissimulação generalizada. Parte da imprensa finge que está tudo normal. Políticos fazem discursos pela democracia enquanto fecham os olhos para abusos do Judiciário. Artistas, intelectuais e influencers que ontem clamavam por liberdade, hoje, aplaudem a censura seletiva e a perseguição política – desde que contra seus adversários.
O Brasil se afunda, e uma parte da elite finge que o chão ainda é firme.
É preciso escancarar: o buraco é mais profundo do que muitos estão dispostos a admitir. E, quanto mais se empurra para debaixo do tapete o desequilíbrio institucional, a manipulação do discurso jurídico, a criminalização da divergência e o avanço da criminalidade com status de poder político, mais se acelera o caminho rumo à ruptura.
A história nos ensinou que regimes autoritários nem sempre usam fardas ou tanques. Às vezes, eles vestem togas, falam em nome da “ciência”, do “bem comum” ou da “democracia” – mas praticam exatamente o contrário.
O Brasil precisa urgentemente reencontrar o caminho da legalidade, do respeito mútuo entre Poderes e do diálogo democrático real, em que todas as vozes – inclusive as dissonantes – possam ser ouvidas. Caso contrário, estaremos apenas adiando o colapso de um sistema que já dá claros sinais de esgotamento.
A solução não está nos “atos institucionais” dos dias de hoje. Eu vejo o futuro repetir o passado.