FABRÍCIO CARPINEJAR

A gratidão mineira

“O mineiro compreende e valoriza as épocas molhadas da vida. Ainda que o engarrafamento seja de permanente sexta, que as poças estraguem as meias, que venham gripes e resfriados, que arruíne as chapinhas


Publicado em 01 de dezembro de 2019 | 03:00
 
 
 
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Mineiro é grato quando chove.

Espera a chuva como a visita de um parente longínquo. 

Olha pela janela, repara a geometria das nuvens, confere os anúncios meteorológicos na televisão, no rádio e no celular. Envolve-se, sem alarde, com a movimentação das correntes frias e quentes, como um assunto privado, não estendendo as previsões como prioridade nas rodas de conversa. 

Pode se irritar quando parte de casa armado de sombrinha à toa. Tem grandes chances de esquecer o objeto de estima no emprego. Mas não a ponto de causar aborrecimento. Considera um mero desconforto passageiro. 

A verdade nua e crua é que dificilmente vai amaldiçoar um temporal, apesar dos relâmpagos estridentes nos morros e correnteza pelas ladeiras. Tem uma preocupação religiosa com a seca. Mesmo urbano, carrega intacta a esperança do interior do Estado de salvar a lavoura. Zela pela vegetação e se responsabiliza pela prevenção das queimadas. 

Chuva para os mineiros é bênção dos céus. Até porque nem sempre chove. O habitual é o azul de brigadeiro, a temperatura amena e o sol constante. 

Acostuma-se à exceção de novembro e dezembro, quando a água não cessa. Não há protestos com os dias cinzentos consecutivos. Toró é maná. Toró é fartura. Toró é colheita. 

Compreende e valoriza as épocas molhadas da vida. Ainda que o engarrafamento seja de permanente sexta-feira, ainda que as poças estraguem as meias, ainda que venham gripes e resfriados, ainda que desarrume as escovas, arruíne as chapinhas e demorados penteados, ainda que os botecos fiquem apertados com as mesas para dentro. 

O que não se pode dizer do mineiro é que ele não seja altruísta, preocupado com o bem comum. Não personaliza a chuva como uma fatalidade e azar, capaz de desmanchar os planos de sair à rua, mas tem uma noção coletiva de necessidade. 

Dirá que é preciso chover acima das ambições e caprichos individuais, dos compromissos profissionais e das festas. 

Senti o comportamento cultural na pele quando desgraçava a tempestade aos meus colegas de trabalho. Xingava, gritava, amaldiçoava o barulho assustador nos telhados e nas calhas, alegava que não saberia como ir embora. Ninguém partilhava de igual indignação. Minha rabugice não encontrou amigos, isolada em sua pantomima inofensiva. Sequer empregavam o caos como desculpa para chegar atrasado, como eu. Aliás, só em Belo Horizonte o dilúvio não é pretexto para faltar com a pontualidade. Parte-se da ideia de que você deve se organizar e acordar mais cedo. Existe uma simplicidade sábia de Noé em cada guarda-chuva aberto na rua. 

O que realmente tira as pessoas do sério é a garoa, esse chove não molha. Quem ama garoa é paulista, não mineiro. 

Todo mundo se vê ofendido com algo que não é nem chuva real, autêntica, mas borrifação irregular, cuspe do diabo. Não dá para ligar o limpador de pára-brisa direito, que apenas borra o vidro de gordura. 

Esse evento climático é tratado como uma humilhação, um constrangimento público, a maior perda de tempo, já que a incomodação não servirá para nada, muito menos para fertilizar a terra. Traz o inferno para a circulação de carros e vaivém dos pedestres longe de gerar qualquer benefício. 

O raciocínio é o seguinte: irei me perturbar como se fosse chuvarada, o mormaço continuará e a estiagem não encontrará remédio. 

Felicidade mesmo é a recompensa do ventinho refrescante no rosto após suportar a torrente, com aquela sensação de dever cumprido.

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