FABRÍCIO CARPINEJAR

A sagrada despensa

“Existe no espírito mineiro um pendor para o armazém de secos e molhados. Mantém-se o costume de acondicionar comida para não se sofrer com a inflação

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 22 de dezembro de 2019 | 03:00
 
 
 
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No meu primeiro aluguel em Belo Horizonte, encantei-me com uma despensa. Um quartinho inteiro para colocar os produtos não perecíveis. Achei coisa de rico. Logo telefonei para a minha mãe gaúcha: 
 
– Acredita que a casa tem uma despensa? 
 
Os butiás caíram de seu bolso. 
 
Nenhuma portaria 24 horas, piscina, salão de festas, academia produziria o mesmo efeito de surpresa materna. Luxo na vida correspondia a ostentar uma despensa. Eu tinha uma despensa para chamar de minha. 
 
Jurei que era uma exceção, até que espiei outros apartamentos de amigos, e eles apresentavam, de regra, aquele espaço. Apesar da limitação dos metros quadrados, em ambiente econômico e enxuto, havia um oratório reservado no fundo da cozinha para o arroz, o feijão e massa.
 
No Rio Grande do Sul, dificilmente um imóvel é planejado sem churrasqueira. Preferível uma churrasqueira a uma garagem. Sua ausência desvaloriza muito o pregão imobiliário, faz o preço do endereço despencar. 
 
Em Minas, a churrasqueira é a despensa. É uma geladeira da sombra, o closet das sacas. Ninguém abre mão. 
Existe no espírito mineiro um pendor para o armazém de secos e molhados. Mantém-se o costume de acondicionar comida para não se sofrer com a inflação. 
 
Alimentos são poupança, são investimento, são riqueza acumulada. 
 
Predomina a prevenção acima dos interesses mundanos. O caos da Venezuela, com a falta de produtos nas estantes, jamais se repetiria nas nossas vizinhanças. É possível sobreviver dois meses sem supermercado. 
 
Mineiro protege os seus ideais tropeiros e está preparado para qualquer guerra ou suspensão de abastecimento. Ainda que o país entre em colapso, o estado se conversa de pé pela providência secular de seus moradores. 
 
Toda cozinha é um estoque para enfrentar a recessão e a carestia. Compram-se as ofertas para guardar ao futuro, não para serem consumidas a curto prazo. Se a farinha está em liquidação, arrebatam-se logo quatro sacos. Pensa-se lá adiante, jamais para se saciarem as necessidades imediatas. 
 
A máxima aplicada é: “um dia posso precisar”. A lista das compras não muda os seus itens, porém tem o adicional dobrado pela quantidade. O carrinho é capaz de virar caminhão no guichê de pagamento. 
 
Tanto que comecei a gastar mais para povoar o lugar, encher as prateleiras de pedra com provisão dos próximos meses. Ranchos semanais começaram a ser mensais, só para se desfrutar do direito de armazenagem. Não iria desperdiçar o santo estoque.
 
Meus cuidados chegaram ao extremo do capricho ao roubar a maior parte dos prendedores de roupa para fechar os saquinhos abertos. Atingi as raias da obsessão ao iniciar um caderninho com a relação de compras feitas com antecedência, controlando a entrada e a saída, dando baixas e fiscalizando o vencimento. 
 
A família já estranhou as manias, mas deixou passar. 
Fui interditado no momento em que exagerei, tranquei a despensa e escondi a chave da família. 
 
– Você está mineiro demais, me devolve a chave? Pediu a minha esposa. 
 
Ela estragou o meu plano de um cofre e o controle de tudo o que estávamos consumindo na mesa. Não ter nascido aqui é um problema para justificar os meus atos.

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