Quando você toma cerveja, sabe a hora de parar. A garrafa chega a perguntar: mais uma ou vamos para casa? A ida ao banheiro mantém a consciência de que pode ou não aguentar mais. A linha do tempo permanece intacta.
Quando você bebe cachaça, esquece de tudo. Não há saideira. Não há nem vontade de urinar. Não existe intervalo. Pensa que nada está acontecendo, que não fez efeito nenhum, que deve ser água, segue empinando os copinhos até perder a razão, a emoção, as referências, e olhará para o lado buscando fixar um ponto inutilmente, não lembrará de quem é e onde está. A vida torna-se um espelho embaçado, a memória não terá Wi-Fi. Perdeu a noção do espaço e da própria cronologia, correndo grandes riscos de dançar no balcão ou pagar a rodada para os desconhecidos no bar.
Cachaça é Bom-dia Cinderela. Aparecem passarinhos, ratinhos e esquilos como alfaiates, preparando a sua roupa para festa.
Quem já não caiu em seu golpe? Quem já não se transformou em abóbora?
Confesso que fui vítima. Também porque em Minas Gerais a bebida é tratada como aperitivo. Um inofensivo tira-gosto que termina por subtrair o gosto de qualquer coisa, pois engole inteiro o seu paladar.
Você não se dá conta que não é amistoso, que é para profissionais, que exige treinamento, que pede pré-requisitos. Não é avisado da seriedade do ofício. E tenta ser simpático.
O problema é que não tem como virar uma única dose. É impossível. Porque não sentirá nada no primeiro sorvo. No máximo, uma queimação gostosa na boca, de quem desinfetou a garganta com um litro de álcool.
O mineiro percebe que é inexperiente e ainda aplaude. A vibração concede o sinal errado. Em vez de parar e agradecer, continua. Enche a sua alma de coragem. Quer agradar a turma, ganhar a confiança, e entra em uma disputa longe de perceber a bola rolando.
Cachaça no Estado é campeonato. É um esporte. Sempre surgirá alguém para desafiá-lo. Como entrou no ringue? Não tem noção. Apenas aceitou provar o produto ingenuamente e agora conta inclusive com torcida organizada. Enxerga bandeiras tremulando, escuta cornetas e apitos. Não pode fugir da raia, ou se acovardar, não duvido que não estejam apostando às ganhas em sua resistência.
“Não se entrega, gaúcho!”, sou incentivado pelo brado constante, pelos gritos em minhas costas.
Tive essa experiência alucinante em Ouro Preto (MG), na hora de almoçar. Não recordo o que comi. Nem o nome do restaurante. Nem o ano, o mês, o dia. Bebi dez shots, obtive o respeito de todos, mas sacrifiquei a sanidade. Ainda sofro sequelas. Há um lapso irreversível na sequência dos fatos, de um homem apagado mais do que um apagão.
Espero não ter sido grosseiro com ninguém, não ter sido inconveniente, tanto que temo encontrar alguma testemunha daquele lugar.
Quando surge uma pessoa dizendo “não lembra de mim?” na cidade histórica, não controlo o arrepio. Não é bem arrepio, mas um enjoo profundo e visceral. Um medo do desconhecido.
Não se mergulha num alambique impunemente, sem trauma.