Cinema de bairro é um charme. Um mistério. Parece gente de verdade, parece gente como a gente. Parece um vizinho. É uma humanização gentil de um comércio. Tem fisionomia, temperamento, rituais e horários bem-definidos para despertar e dormir.  

O cinema pode morar no seu quarteirão ou a algumas quadras das suas janelas, você cria uma empatia, a ponto de talvez descobrir o sucesso de um filme só pelo tamanho da fila ou pela correria do pipoqueiro. Pode exercitar a curiosidade espontânea além das cotações dos sites e sinopses dos jornais.

Pode desvendar a grade das sessões em cima da hora. Pode perguntar o que está acontecendo, conversar com quem está esperando para comprar seu bilhete. O boca a boca muda sua opinião, o afeto influencia decisivamente o seu calendário cultural. Quantos filmes deliciosos acabei assistindo simplesmente passando em frente a um cinema? Não resisti ao tumulto do público na véspera de entrar no escurinho.  

Diferente dos complexos dos shoppings, o cinema de bairro forma cinéfilos. Você vai para um único objetivo, não é um refúgio do passeio para as lojas ou uma distração do consumismo. Está ali para visitar a sua solidão ou para namorar dividindo os olhos na mesma direção. Gosta mesmo da sétima arte, além do mero entretenimento.  
  
É um piquenique do espírito, da quietude, duas horas de projeção dos sonhos dos outros que mudam a sua vida. É uma estação de trem para dentro de si.  

À sua disposição, desfrutará de uma programação representativa de países não tão festejados, destoando do monopólio dos blockbusters.  

Em Belo Horizonte, os cinemas de bairro foram lendários. Quem não amou o Cine Pathé, com fachada art déco e suntuosa capacidade de mil assentos, na avenida Cristóvão Colombo, 315?  

A turma da Savassi deitava e rolava em suas imediações. Pulava o muro para acompanhar de graça as matinês. E, de madrugada, chegava ao extremo de recompor os letreiros do filme em cartaz. Fizeram escândalo aos costumes da época ao alterar as letras de posição de “As Pupilas do Senhor Reitor” (1935). A adaptação pudica do romance do português Júlio Dinis virou um filme pornô: “As P. do Senhor Rei”.

Cada região contava com a sua cinemateca privada, o seu santuário da independência dos adolescentes, ponto de encontro certo nos finais de semana. Quantos casais se enlaçaram dentro de seus limites mágicos? Quantos primeiros beijos tiveram o empurrão de uma cena? Quantos pares formalizaram a relação ao sol após a luz da tela?  
 
O cinema era o aquece dos bares nas saídas a dois.  Palladium, Jacques, Guarani, Acaiaca, Metrópole, Nazareth, Art e Tamoio, Art-Palácio, Royal, Roxy, Odeon e São José....  

Pergunte aos pais, pergunte aos avós, e descreverão suas façanhas pelas salas de rua.  

Belas Artes é o único sobrevivente lírico dessa filosofia caseira, de convívio miúdo e contato personalizado. Qualquer um que já acendeu uma paixão na caixinha de fósforos da ladeira da Gonçalves Dias sabe de cor quem são os bilheteiros, os porteiros, os projetistas. Não mudam conforme a temporada. Permanecem os mesmos das décadas passadas, fiéis escudeiros de nossos lares. Puxam papo, guardam a nossa assiduidade, comentam que sentiram saudades quando sumimos por um tempo.  

É igual cumplicidade que se cria com uma padaria antiga, onde somos tratados pelo nome.  
 
Frequento o Belas Artes com esposa e filho. Estabeleci o hábito de comparecer duas vezes por semana para me reabastecer de inspiração e me informar dos trabalhos autorais dos novos cineastas. É uma de minhas maiores alegrias.

Compro a pipoca com alho na calçada (pacote grande para disputar a três), espio os lançamentos na vitrine da livraria e guardo os canhotos dos ingressos como quem jamais coloca fora bilhetes de amor. Eu percebo que aperfeiçoamos a nossa família em suas poltronas vermelhas, aumentamos a nossa cumplicidade, desenvolvemos mais assuntos em comum e afinidades para mantermos a proximidade firme das palavras. Tornei-me um melhor pai, um melhor marido depois que desci as suas escadarias.  

Com a pandemia e a suspensão das atividades, Belas Artes corre o risco de fechar. É parte da minha biografia sentimental e da história de Minas que se perderá impunemente. Temos a chance de mudar o roteiro do drama – de lenço e fungada – com uma mobilização quixotesca, e assegurar aquele final feliz – de riso e redenção – próprio de uma comédia romântica.  
 
Colaborações voluntárias em: https://benfeitoria.com/soscinebelasbh.