FABRÍCIO CARPINEJAR

Nosso porteiro de cada dia

Por mais que se espalhem câmeras e sejam instaladas portarias eletrônicas, ele não perde a sua função. Permanece soberano, ao lado da tecnologia.


Publicado em 26 de abril de 2020 | 03:00
 
 
 
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O porteiro é uma figura fundamental em Minas. Talvez a categoria só encontre equivalente de status na zona sul do Rio de Janeiro. 
 
O edifício pode não contar com área de lazer, playground, salão de festas, piscina, até elevador, mas terá porteiro. 
 
Por mais que se espalhem câmeras e sejam instaladas portarias eletrônicas, ele não perde a sua  função. Permanece soberano, ao lado da tecnologia. 
 
Será motivo de insurreição e de revolta dispensar quem preserva as peculiaridades e a história do lugar. É o único que tem conhecimento de onde está a planta do imóvel, onde passam os encanamentos por debaixo das paredes. 
 
Sua demissão causará impeachment do síndico. É um golpe mais duro do que aumentar a taxa de manutenção sem prévia consulta. 
 
Ele é o prefeito do condomínio. Quem organiza a correspondência, afasta os perigos e golpistas querendo entrar com segundas intenções na parte interna, resolve pendências e ajuda na divisão de tarefas da higiene e da limpeza. 
 
Se precisar de algum serviço no bairro, o porteiro é o Google. Se precisar chegar em algum endereço próximo, ele é o Waze. 
 
Memorizou o nome e o sobrenome dos residentes, suas manias e predileções, os integrantes da família e os visitantes, as placas e os tipos dos carros, os times de futebol de cada um e as suas paixões. Conserva, na ponta da língua, o dia e os minutos de entrada e saída das pessoas. 
 
Sabe tudo de todos, não fala nada para ninguém dos outros. Demonstra o domínio budista de guardar segredos. É um berço para o riso, um túmulo para as confidências. 
 
Não vai privilegiar um morador em detrimento do outro, porque antevê as fofocas. Seu tratamento é igualitário e democrático, para não gerar queixas. 
 
Chega cedo e sai tarde, gastando o seu par de camisas brancas e calças azuis. Cuida dos trajes como se fossem relíquias. Lustra os sapatos pretos, esforçando o verniz a ser uma lanterna de nossos passos no escuro. 
 
Chama atenção o quanto consegue ser espaçoso e receptivo na alma, apesar de frequentar um mirante apertado, uma sala de estar pequena e mirrada, em que não cabe nem o porta-retrato dos filhos. 
 
Não sofre de claustrofobia pela hiperatividade de seus contatos. Encontra mais chão nas palavras. 
 
Dificilmente comentará os seus problemas - e deve ter muitos -, cumprindo a terapia do olhar, sendo um compenetrado ouvinte. 
 
Parece que tem todo o tempo para oferecer, porque não se esconde de estar presente. 
 
Atende as chamadas de casa com objetividade, o celular em concha na boca, sussurrando, ainda que não precise dividir a atenção com alguém na hora. 
 
Não mistura trabalho com assuntos pessoais, apesar dos sacrifícios e renúncias, imbuído do dever de servir quando se vê em seu plantão. 
 
O rádio e a televisão pequenina nunca o deixam sozinho, companheiros fieis da vigília, onde alterna a observação intensa do circuito interno com as últimas notícias e acontecimentos. 
 
Ele é extremamente informado, do perto e do longe, esperto em começar conversas, discreto nas despedidas. 
 
Representa a humanidade sensível e bem humorada que encontramos antes do portão, incentivando que a nossa vida não seja jamais um poço de indiferença.

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