Eu nasci num ambiente de fábrica, nele cresci e aprendi com meu pai uma infinidade de coisas. Tratava-se de um fábrica de farinha de trigo ou, mais precisamente, de um moinho, cuja data de fundação ninguém lembra.
Ele continua lá à beira de um canal, construído entre os séculos XVI e XVII para levar as águas do rio Taro até o rio Parma (que empresta seu nome à cidade homônima) e fornecer força hidráulica às mós de pelo menos cinco moinhos erguidos às suas margens. Moinhos que, em certa época, foram dos meus antepassados. Nos arquivos da igreja de Vicofertile, na província de Parma, se encontra um Domenico Medioli, dono do moinho no ano de 1706.
A região, como diz o nome do povoado, é muito fértil, excelente produtora de trigo, de tomate, de milho, de forragem, sem contar que é uma rica bacia leiteira. O queijo parmesão foi inventado nas redondezas e continua sendo produzido e exportado com qualidade inigualável.
Continuando a encher a bola de meu berço natal, lembro que lá surgiram as primeiras fábricas de extrato de tomate, de geleias, de macarrão (a Barilla é de Parma, assim como a famosíssima Parmalat). Meu bisavô Vincenzo ousou, em 1888, eletrificar o moinho onde nasci, fincando uma turbina levada da Alemanha, numa queda do canal que, por isso mesmo, mudou de traçado quando a energia elétrica nem sequer existia na cidade. Os jornais da época pontificaram a obra, fazendo de meu bisavô um “cavalier” e do moinho pintado de amarelo, um ponto de romarias noturnas para ver o invento de lâmpadas acesas.
Nos últimos anos, a menos de 500 m da cerca do moinho e a 200 m do sítio onde nasci, foram encontrados restos de tumbas com mais de 7.000 anos. Seria este o lugar da Itália que apresenta os mais antigos vestígios de civilização, muito anterior a Roma. Foi encontrada ainda, na sepultura de uma mulher e de uma menina, a estatueta da divindade pagã da Mãe Terra.
Meu pai foi por muitos anos o diretor industrial do moinho, que era um dos mais modernos da Itália, mas preservava com certo orgulho dos meus familiares lembranças dos séculos anteriores. Havia coisas estranhas, como galerias subterrâneas que levavam a refúgios antiaéreos construídos pelo Exército alemão, que tomou o moinho à força em 1941, transformando-o num posto de abastecimento de suas tropas no norte da Itália.
Moinho que prestasse tinha que ter todo o acabamento em pinho de riga (única madeira que resistia a cupins e roedores) e muitas escadas que davam acesso, como num quadro de Escher, a andares e mezaninos no meio de peneiras e separadores.
Aprendi o mapa de túneis e porões abandonados e as maravilhas de um desmonte de material cercado de uma matinha de onde tirava restos imprestáveis da Segunda Guerra, como botões, cartuchos, impressos, garrafas, cacos de qualquer coisa, válvulas de rádio, instrumentos retorcidos, deixados para trás pelos alemães no fim da guerra.
Meu pai, às 18h, me deixava acionar uma chave que disparava uma sirene ouvida a mais de três quilômetros. Seu som inconfundível marcava em todo o povoado, e além dele, o fim do dia de trabalho. Na prática, “ditava a lei” no pedaço.
Com um pai que me adorava, com apenas 7 anos eu já sabia dirigir a locomotiva (do moinho), que servia para puxar vagões pelo ramal da estação de trem ao pátio interno. E, para que eu batesse recordes de precocidade aos 8 anos, quem chegava ao moinho era chamado para assistir a minhas proezas dirigindo uma Vespa, um carro Fiat ou uma locomotiva alemã com motor a diesel, que existe ainda hoje, “monumentalizada” sobre um pedestal. O moinho foi vendido na década de 70, e se encerrou assim um ciclo de alguns séculos da família Medioli em atividades de moagem de trigo.
Daquela época saudosa lembro-me de uma infinidade de acontecimentos, mas o que mais ficou comigo é o cheiro. Um cheiro que não se encontra mais em nenhum lugar e para mim continua sendo, na lembrança, o melhor do mundo, o mesmo que meu pai carregava em suas roupas ao chegar em casa. Um cheiro que ainda respiro quando me lembro dele.