Gabriel Molnar e Rodrigo Campelo
O repasse de franquias escancara uma das maiores lacunas do franchising brasileiro: embora o setor seja regulamentado, a transferência de unidades continua sem regras claras. Segundo o consultor Marcelo Cherto, fundador do Grupo Cherto, a prática em excesso ameaça a saúde das redes e deveria ser encarada como um sinal de alerta, mas muitas franqueadoras ainda preferem ignorar.
“Quando um franqueado quer vender sua unidade, isso já indica que algo não deu certo, seja pela escolha equivocada do candidato, pela falta de treinamento, ou pela ausência de suporte adequado da franqueadora”, afirmou Cherto. “O problema é que, em vez de atacar a causa, muitas redes tratam o repasse como algo natural, o que pode comprometer a consistência da marca.”
Sinal de fragilidade
Na visão do especialista, um sistema de franquias saudável deve ter repasses pontuais, decorrentes de situações específicas da vida do empreendedor, como mudança de cidade ou questões pessoais. Quando o repasse se torna frequente, revela que a operação não conseguiu gerar a rentabilidade ou a satisfação esperada.
Esse movimento fragiliza a rede em dois níveis. Primeiro, porque transfere ao comprador uma unidade já desgastada por problemas de gestão ou baixa performance. Segundo, porque a franqueadora perde tempo e energia no processo de substituição, em vez de investir em melhoria contínua da rede. “O franqueado sucessor já começa com desvantagem, muitas vezes assumindo um negócio com histórico ruim, o que aumenta as chances de nova quebra ou de mais um repasse no futuro”, explica Cherto.
Impactos na padronização
Outro ponto de alerta é a padronização. Como cada franqueado traz seu próprio estilo de gestão, sucessivas trocas de operador aumentam a probabilidade de desvios no modelo, comprometendo a experiência do consumidor. “Uma rede que convive com repasses frequentes dificilmente consegue manter consistência na operação. O cliente sente a diferença, e isso enfraquece a marca”, afirma o consultor.
Esse efeito cascata pode reduzir o valor de mercado da franquia, afastar investidores e gerar um ciclo de instabilidade difícil de reverter.
O que diz a lei sobre o repasse de franquias?
Apesar de se tornar cada vez mais comum no franchising brasileiro, o repasse de franquias ainda opera em uma zona cinzenta da legislação. A lei que regula o setor não menciona o termo diretamente, mas exige que a Circular de Oferta de Franquia (COF) informe a existência de regras para transferência ou sucessão de unidades. Na prática, isso deixa claro que o repasse é permitido, mas o “como” depende do contrato e das diretrizes internas da rede.
O repasse de franquias envolve questões contratuais detalhadas, como a anuência do franqueador, taxas de transferência, exigências de treinamento do novo franqueado, prazos e eventuais garantias. A lei obriga ainda que todas as taxas e valores cobrados sejam apresentados na COF, que deve conter o contrato-padrão e as penalidades aplicáveis. Assim, o instrumento legal fornece um mínimo de transparência, mas não regula o procedimento de forma uniforme.
Além disso, o cumprimento das regras de transparência é fiscalizado de forma indireta: a COF precisa ser entregue pelo menos 10 dias antes da assinatura de qualquer contrato ou pagamento de taxa, e a omissão de informações pode tornar o contrato anulável, com devolução dos valores pagos. No entanto, a lei não estabelece critérios claros para avaliar a elegibilidade do comprador, indicadores de performance ou limites de repasses, deixando essas decisões às franqueadoras.
Essa lacuna faz com que o repasse funcione como um termômetro da saúde das redes. Franquias com excesso de transferências podem indicar problemas de gestão ou de rentabilidade, mas não há regras legais que obriguem a franqueadora a intervir. No Brasil, o repasse é essencialmente regulado pelo contrato, enquanto no exterior existem plataformas especializadas e métricas mais estruturadas para garantir estabilidade e transparência no processo.
O papel da franqueadora
Para mitigar o problema, Cherto defende que a franqueadora assuma responsabilidade direta na prevenção do repasse, a começar pela seleção criteriosa dos candidatos. “Escolher mal o franqueado é abrir a porta para futuros problemas. Treinamento robusto e suporte próximo são indispensáveis para que o operador tenha condições de prosperar”, diz.
Além disso, ele sugere que as redes criem mecanismos de acompanhamento constante, identificando sinais de dificuldade antes que o franqueado decida vender sua unidade. Em casos inevitáveis, a franqueadora deve mediar o processo de transição, garantindo que o novo operador tenha perfil adequado e acesso a todas as informações sobre a situação do negócio.
Profissionalização no repasse de franquias
Apesar dos riscos, o repasse também pode abrir espaço para um movimento de profissionalização. Em algumas redes, começa a surgir o “franqueado investidor”, que compra unidades em dificuldade para reestruturá-las, apostando em ganho de escala. Essa prática, no entanto, exige maturidade da rede e critérios rigorosos de gestão.
“Se o repasse virar regra, a rede está doente. Mas quando acontece de forma pontual, pode até ser positivo, desde que administrado com clareza e responsabilidade”, conclui Cherto.