A Coreia do Norte não dá qualquer informação sobre o soldado dos Estados Unidos que cruzou a fronteira com a Coreia do Sul sem autorização no início desta semana. Acredita-se que o soldado raso de 2ª classe Travis King tenha sido levado a alguma prisão do regime controlado pelo ditador Kim Jong-un. O militar fez a travessia durante uma excursão turística, em que se embrenhou após fugir da detenção em unidade do seu exército no lado sul-coreano, por agredir um cidadão local. Norte-americanos nunca foram bem vindos no norte da península. Outros foram presos pelos mais diversos motivos, inclusive sem prova de crime algum. 

Um país sob uma ditadura, que ignora convenções mundiais de direitos humanos, mantêm relações diplomáticas com poucas nações, em guerra tecnicamente com a Coreia do Sul há mais de meio século – apesar dos bombardeios terem sido suspensos em 1953 –, em permanente conflito verbal com os EUA e com ameaças de atingir países inimigos com ogivas nucleares, não é amigável com os turistas estrangeiros ávidos a captar o maior volume possível de imagens dos cenários e cidadãos norte-coreanos, seja de qualquer origem for o visitante e o volume de dinheiro ele esteja disposto a deixar para  Kim Jong-un.

É possível entrar na Coreia do Norte pela fronteira com a China, mediante a contratação de pacote turístico por agência credenciada e o cumprimento de uma série de normas. Mas é muito difícil circular pelas suas cidades e estradas. Principalmente por suas zonas rurais, onde, segundo organismos internacionais, há miséria, fome e campos de trabalho forçado. Não há liberdade para se locomover fora da hospedagem. Agentes do Estado comunista sempre acompanham os visitantes, durante o rígido itinerário, geralmente baseado em visitar a capital, ainda que alguns também incluam viajar à Zona Desmilitarizada, na fronteira com a Coreia do Sul, que Travis King  cruzou esta semana. 

Sequer é dado ao turista que contratou os serviços de uma agência em Pequim a opção de escolher o hotel e o roteiro da viagem. Também não é possível sair do hotel sem o guia ou sem a autorização dele. Há risco de ser preso mesmo dentro do hotel, pelas mais simples e inocentes atitudes – do ponto de vista estrangeiro – Como a que levou à detenção do estudante norte-americano Otto Warmbier, em janeiro de 2016. O caso expôs ao mundo os riscos de se visitar a Coreia do Norte. 

Sentenciado a 15 anos de cadeia por trabalhos forçados por ter arrancado um cartaz de propaganda política no corredor do hotel em que estava hospedado, ele passou 17 meses trancafiado em um presídio norte-coreano. "Vamos armar-nos fortemente com o patriotismo de Kim Jong-il!", dizia mensagem estampada no pôster. Causar qualquer tipo de dano ou até mesmo roubar materiais com o nome ou a imagem de um líder norte-coreano é considerado um crime grave pelo governo norte-coreano — Kim Jong-il, ex-presidente do país, é o pai Kim Jong-un.

O estudante morreu uma semana após ser enviado para casa, em junho de 2017, em coma. Na versão autorizada por Kim Jong-un, logo após a sentença, Warmbier sofreu uma lesão neurológica na prisão, por causa de um suposto acidente. Já em território norte-americano, onde desembarcou de uma UTI aérea, em uma maca, imóvel, médicos do Centro Médico da Universidade de Cincinnati afirmaram que ele estava "em um estado de vigília sem resposta", comumente conhecido como estado vegetativo persistente. 

Otto Warmbier era capaz de respirar por conta própria e piscar os olhos, mas, por outro lado, não mostrava sinais de consciência de seu ambiente. De acordo com sua equipe médica, exames do cérebro revelaram que Warmbier sofreu uma extensa perda de tecido cerebral em todo a região, consistente com um evento cardiopulmonar que causou a privação de oxigênio na cabeça. Houve uma suspeita de que ele sofreu lobotomia. Depois que seus pais pediram a remoção do tubo de alimentação, ele morreu no hospital às 14h20 de 19 de junho de 2017, aos 22 anos. A causa da morte jamais foi conhecida, pois os pais do estudante não permitiram a autópsia no corpo — foi feito apenas um exame externo post-mortem.

“Excursões baratas para lugares que sua mãe não gostaria que você visitasse”

Aluno da Universidade da Virgínia, Otto Warmbier era curioso sobre o mundo e queria conhecer todo ele, disse seu pai em uma entrevista em abril de 2017. Por isso, no fim de 2015, Warmbier se tornou integrante da New Year’s Party Tour (Excursão da Festa de Ano Novo), da Young Pioneer Tours, uma agência de viagens que tinha como slogan “excursões baratas para lugares que sua mãe não gostaria que você visitasse”. 

De Pequim, o ponto de encontro, o grupo — que incluía outros 10 cidadãos norte-americanos —  embarcaria em um voo para Pyongyang, onde ficaria apenas cinco dias. O estudante foi preso na última noite da excursão, após beber no bar do hotel com companheiros de viagem. Ele teria acessado um andar restrito a funcionários e agentes do Estado, onde se deparou com o pôster que pretendia levar como souvenir.

O pai de Warmbier, Fred, acusou as empresas que promovem o turismo na Coreia do Norte de “alimentar” o regime ditatorial. Afinal, destacou ele, as excursões são uma das formas encontradas por Kim Jong-un para driblar as sanções e permitir a entrada de moedas estrangeiras no país. 

Após a morte do estudante, os EUA decidiram proibir viagens de seus cidadãos ao país de Kim Jong-un. A medida ainda está em vigor. Já a Young Pioneer Tours afirmou que não incluiria mais cidadãos dos EUA nas excursões organizadas por ela. A agência de viagens disse que lhe foi negada qualquer oportunidade para se encontrar com Warmbier, após ele ter sido detido, e que a forma como as autoridades trataram o seu caso “foi chocante”. 

As duas outras principais agências de viagens que organizavam esse tipo de excursões, a Koryo Tours, no Reino Unido, e a Uri Tours, sediada em Nova Jersey (EUA), disseram, em julho de 2017, que estavam “revisando” a venda de pacotes de viagens à Coreia do Norte para clientes norte-americanos. Todas as empresas tiveram turistas detidos na Coreia do Norte, mas em nenhum caso com consequências tão graves quanto as enfrentadas por Warmbier.

Na mesma época, outros norte-americanos continuavam presos na Coreia do Norte, mas nenhum havia ido ao país como turista. Trabalhavam lá, sendo dois em uma universidade privada coreano-americana e um em um hotel localizado em uma zona econômica especial no norte do país – área reservada a empresas nacionais e estrangeiras. 

Renato Alves, repórter e redator de O TEMPO em Brasília, esteve na Coreia do Norte em 2017. Era o único jornalista ocidental no país durante o bem sucedido teste da bomba-h norte-coreana. Ele é autor do livro “O Reino Eremita: um jornalista na Coreia do Norte”, lançado em 2018 pela editora mineira Quixote-Do.