BRASÍLIA – A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) propôs à contadora de histórias Nyedja Cristina Gennari Lima Rodrigues, que interpretou um feto sendo abortado em uma encenação no plenário do Senado na última segunda-feira (17), a encenar o momento em que a parente de um parlamentar é vítima de um estupro. 

Veja o vídeo:

 

“Eu queria até o telefone, o contato, daquela senhora que esteve aqui ontem, encenando aquilo que nós vimos. Sabe por quê? Porque eu quero ver ela encenando a filha, a neta, a mãe, a avó, a esposa de um parlamentar sendo estuprada. Eu quero que ela faça a encenação do estupro agora. Por que não? Se encenaram um homicídio aqui ontem, que encenem o estupro”,  afirmou Thronicke em discurso no plenário do Senado, na terça-feira (18).

A senadora ressaltou que é contra o aborto, mas lembrou que o Estado é laico e a legislação brasileira permite a prática em algumas hipóteses, como o estupro. Ela afirmou ser totalmente contrária ao projeto de lei que ainda está na Câmara, mas foi aprovado sua tramitação em regime de urgência, e equipara o aborto em até 22 semanas com o crime de homicídio simples.

“Quero com isso dizer que todos nós aqui somos a favor da vida. A Bancada Feminina é a favor da vida e o aborto é proibido no nosso país, com três exceções dificílimas: o feto anencéfalo, risco de morte da mãe e o estupro. E não é obrigada a abortar quem foi estuprada e por acaso engravidou. Vai quem quer, de acordo com a sua fé, com a sua consciência. Por quê? Porque o Estado é laico”, ressaltou Thronicke, vice-presidente da Bancada Feminina.

Caso o novo texto seja aprovado, a grávida que interromper voluntariamente uma gestação com mais de 22 semanas pode ter uma pena maior que a do estuprador. A alteração no Código Penal faria com que ela fosse presa entre 6 e 20 anos caso realizasse o aborto. A pena do estuprador é de 6 a 10 anos. Meninas com menos de 18 anos enquadradas na nova lei teriam que cumprir medidas socioeducativas, similares às penas dos adultos, com restrição de liberdade. 

“E, justamente, quem tanto fala em liberdade quer tolher a liberdade alheia, quer impor a sua fé. Um verdadeiro fundamentalismo! Isso é ditadura. Então, é tão contraditório que chega a ser vergonhoso. Eu li o projeto de lei e não vi pena nenhuma para o genitor que vai atrás do médico que vai abortar. Ele paga o aborto, mas ele não tem participação nenhuma. Coautoria, participação, nada disso foi abordado. Quem que foi abordada? A mulher. A menina, sim, para cumprir medida socioeducativa, e o médico ou a médica”, discursou Thronicke.

Senadora também questionou parlamentares sobre filhas e esposas

O texto é encampado pela Bancada Evangélica e outros parlamentares conservadores. Eles promoveram uma sessão “especial” no Senado, na última segunda-feira, que seria para debater o tema, mas deu espaço apenas para defensores do projeto antiaborto. Antes dos discursos, houve a performance da contadora de histórias Nyedja Gennari.

Convidada pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE) para fazer o teatro durante a audiência pública, ela simulou um feto de 22 semanas reagindo ao aborto, inclusive com falas. Na sessão do dia seguinte, Soraya Thronicke sugeriu que seria igualmente válido encenar outras situações dolorosas e traumáticas, como o estupro de familiares de parlamentares. A senadora também questionou os parlamantares, caso uma filha ou a esposa engravidassem de um estuprador. 

“E pergunto para vocês: se é a filha de um parlamentar aqui, com 10 anos, com 11 anos, com 18 anos, com 20 anos, que é estuprada – esse parlamentar, diante de um flagrante delito, é obrigado a denunciar –, ele vai fazer o quê? Vai denunciar a filha para 20 anos de cadeia? E se a mulher de um parlamentar for estuprada e engravidar? Se esta mulher engravidar, então este parlamentar vai fazer o quê? Vai levar a termo a gestação. Aí, ele vai acompanhar a gravidez decorrente do estupro na esposa dele e vai dar toda a atenção. No dia em que nascer, ele vai escolher se assume essa criança ou se ele a dá para a adoção. É, mais uma vez, algo que nos choca.” 

Contadora de histórias é assessora da vice-governadora do DF

Nyedja Cristina Gennari Lima Rodrigues tem 50 anos. Nascida em Cuiabá, mora em Brasília desde 1987. Professora de formação, deu aulas na rede pública do Distrito Federal para alunos do ensino fundamental. Deixou as salas de aula em 2012 para se dedicar à contação de histórias. Faz apresentações em shows, casamentos, shoppings, eventos corporativos, políticos e até em enterros. 

A princípio, Nyedja trocou o magistério para se dedicar à contação e criou o projeto “As Minhas e as Outras Histórias”, em que apresenta histórias de sua autoria, com figurino e cenografia, a depender do evento. Como escritora, tem quatro publicações voltadas ao público infantil. Mas ela  tem outra renda, graças ao cargo de confiança que ocupa no governo local. 

Nyedja é assessora especial de Celina Leão (PP), vice-governadora do DF e aposta do governador Ibaneis Rocha (MDB) para sucedê-lo na disputa local em 2026 – o governo não informou o salário da contadora de histórias. Celina e Ibaneis são aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Antes do emprego no gabinete de Celina, Nyedja ocupou um cargo de confiança no Senado, entre 2019 e maio de 2023. Ela foi nomeada pelo senador bolsonarista Izalci Lucas (PL-DF). A mulher ganhava R$ 7,1 mil mensais como auxiliar parlamentar sênior, além de benefícios.

Em maio de 2019, Nyedja Rodrigues ganhou o título de cidadã honorária de Brasília, concedido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal. Ela conta histórias em eventos políticos e legislativos desde tal ano. Já fez outras encenações contra o aborto, como a da última segunda-feira. 

A contadora de histórias trabalha também como mestre de cerimônias. Experiente em rádio, Gennari faz telegramas ao vivo, locuções e narrações de áudios em geral. Em 2021, recebeu o troféu Baobá, prêmio concedido a contadores de histórias, escritores, editoras, movimentos e fundações que difundem a cultura brasileira.

Após a sessão no Senado, Nyedja passou a receber muitas críticas em suas contas em redes sociais. Algumas em tom de ameaça. Ela decidiu gravar um vídeo afirmando que sua apresentação tinha relação com a assistolia fetal, procedimento médico que consiste na injeção de produtos químicos para colocar fim à gestação.

“Em nenhum momento a minha apresentação estava associada a esse PL que está sendo discutido. Eu não quero saber quem faz o aborto, não estou julgando quem faz o aborto. Eu sou uma mulher, sou mãe de duas filhas e em nenhum momento a minha história foi para agredir alguma mulher”, disse Nyedja na gravação.

“Se você é a favor do aborto, que legal. Se você é a favor de qualquer outra coisa, que legal. A gente tem opiniões diferentes e a vida segue, isso sim é democracia”, assim ela encerrou o vídeo. Nyedja disse que, diante das ameaças pelas redes sociais, registrou um boletim de ocorrência. 

Mulheres fazem manifestação e Lira diz que tema fica para o 2º semestre

Na terça-feira, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que vai ficar para o segundo semestre a discussão sobre o projeto de lei que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio simples.

A decisão pelo adiamento foi tomada após reunião de líderes, na terça-feira. Ficou definida a instalação de uma comissão especial, a partir de agosto, para debater o texto. A escolha da relatora também deve ficar para depois do recesso parlamentar.

Nesta quarta-feira (19), um grupo majoritariamente de mulheres fez o primeiro ato do movimento “Criança não é mãe” na Câmara dos Deputados. Elas pedem o arquivamento do Projeto de Lei 1904/24, que equipara ao crime de homicídio a realização de aborto após 22 semanas de gestação.