Com o argumento de modernização da Loteria Mineira, a Secretaria de Estado de Fazenda (SEF/MG) lançou, em fevereiro deste ano, a plataforma Lotominas.bet, que vai atuar no setor de apostas esportivas. Apesar de ser cadastrado no Brasil, ao contrário das empresas concorrentes que exploram paraísos fiscais como Curaçao e Malta, o novo serviço oferecido pelo governo Romeu Zema (Novo) vai operar em um setor ainda sem qualquer regulamentação, na chamada “zona cinzenta” da legislação.
Atualmente, as casas de apostas operam no Brasil graças à Lei 13.756, de 2018. Essa legislação, sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), obrigava o Ministério da Fazenda a regulamentar o setor em até dois anos, prazo prorrogável por mais dois. No entanto, essa data venceu em 12 de dezembro do ano passado, ainda na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Apesar do cenário de incerteza quanto à regulamentação, o governo de Minas assinou um contrato com uma empresa privada para criar a Lotominas.bet – o que chama atenção da advogada Mariana Chamelette, especialista em direito desportivo que acompanha o setor de perto.
“A Lei 13.756 traz as apostas de quota fixa (baseada em eventos reais) como uma modalidade lotérica, sob a forma de serviço público exclusivo da União. O STF tem uma decisão de que a União tem competência privativa para legislar sobre loterias, mas não tem o monopólio de exploração. Alguns Estados têm interpretado que essa decisão se estende para apostas esportivas. Contudo, considerando o texto expresso da lei, não vejo muita segurança jurídica nesse licenciamento e exploração pelo Estado de Minas Gerais”, opina Chamelette.
Entendimentos
O especialista em direito de jogos Filipe Senna afirma que o ineditismo de Minas no tema dificulta até mesmo uma avaliação jurídica sobre a Lotominas.bet. “É um debate que tem duas vertentes. Há uma que entende que há possibilidade de exploração estadual das apostas esportivas, enquanto outra entende que essa matéria é exclusiva da União. Realmente, a Lotominas traz uma situação inédita por ser sediada em território nacional. Nesse momento, como o debate (sobre a regulamentação) ainda está em aberto, é necessário avaliar e observar como será essa operação”, diz o advogado.
De acordo com o governo de Minas Gerais, a Lotominas.bet recebeu investimento de R$ 15 milhões. O dinheiro foi pago “integralmente e por conta e risco da concessionária Intralot”.
A gestão argumenta que a plataforma vem para promover a “modernização da Loteria Mineira” e que os recursos arrecadados via apostas esportivas serão “revertidos para o financiamento de projetos sociais executados pelo Governo de Minas”, como das secretarias de Estado de Saúde, Desenvolvimento Social e Segurança Pública.
Setor aguarda por MP da regulamentação
Enquanto isso, há expectativa do setor para a publicação de uma Medida Provisória (MP) pelo governo federal, com objetivo de regulamentar as apostas. Fontes ouvidas pela reportagem informam que é esperada para breve a publicação de uma Medida Provisória (MP) pelo governo federal, com o objetivo de regulamentar as apostas.
A elaboração da MP envolve trabalhos do Ministério da Fazenda, principalmente da Receita Federal, uma vez que uma das principais questões diz respeito à tributação. Especialistas defendem que os impostos incidam apenas sobre os lucros das empresas, sem onerar o total arrecadado. A avaliação é de que uma legislação desfavorável às casas as afaste do Brasil. Como a demanda vai continuar independentemente da legislação, diante da popularização do palpitômetro nos últimos anos, a ilegalidade será a regra do jogo se as empresas não vierem para o País.
Um dos pontos de discussão da MP, de acordo com fontes consultadas pela reportagem, diz respeito ao patrocínio das casas de apostas. Há quem defenda a proibição da publicidade de marcas que não estejam licenciadas no Brasil, o que é visto com preocupação pela advogada Mariana Chamelette. “Se as empresas não puderem fazer patrocínios e não quiserem trazer os negócios para o Brasil, é um dinheiro que vai acabar indo embora, inclusive, do futebol”.
Para a especialista em direito desportivo, um dos caminhos possíveis é impedir o acesso a sites de empresas não licenciadas no País. “O próprio Banco Central pode tomar medidas para que nenhum prestador de serviço de facilitação de pagamentos preste serviço para as operadoras que não sejam licenciadas. Essas proibições podem obrigar as empresas a operar na legalidade, de forma licenciada”, opina Mariana.
A reportagem questionou o Ministério da Fazenda, que informou que a regulamentação será feita por meio de Medida Provisória. "A MP vai alterar a lei e sanar algumas lacunas de modo a permitir que o Ministério inicie a normatização da atividade, regulamentando todas as exigências para o funcionamento dos sites, normas de tributação, sanção, fiscalização de integridade esportiva e financeira de apostas no País, com regras claras estabelecidas em atos normativos específicos", observa a pasta.
O governo ainda ressalta que a normatização nada tem a ver com a atividade dos jogos de azar, como cassinos e bingos. Também não interfere na comercialização dos games.
Haddad promete tributação
O ministro da Fazenda Fernando Haddad (PT) se manifestou na última quarta-feira (1º) favoravelmente à tributação das apostas. A equipe econômica do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) projeta arrecadar entre R$ 2 bilhões e R$ 6 bilhões com a proposta, que viria para compensar as perdas com a correção do Imposto de Renda para Pessoa Física (IRPF). O governo já se comprometeu a elevar a faixa de isenção do IRPF de R$ 1.903 para R$ 2.640, o que alivia os contribuintes de baixa renda, mas compromete os caixas públicos.
"Vamos regulamentar. Nós reajustamos a tabela do IR, e isso tem uma perda pequena de arrecadação, mas tem. Nós vamos compensar com a tributação sobre esses jogos eletrônicos, que não pagam nenhum imposto e levam uma fortuna de dinheiro do país", disse Haddad em entrevista ao UOL.
O chefe da Fazenda ainda complementou. Ele disse que há debates com outras pastas do governo sobre o tema, mas já há um denominador comum internamente. "A gente manda [a regulamentação] para a Casa Civil e obviamente que serão chamados os ministérios envolvidos, mas é uma prerrogativa da Fazenda. Já falei com o presidente sobre isso e ele é a favor. O jogo no mundo todo é tributado", completou o ministro.
Sem regulamentação, competições estão ameaçadas
O Ministério Público de Goiás (MPGO) revelou, por meio de uma operação em fevereiro, um esquema de manipulação de resultados em três jogos da Série B do Brasileirão no ano passado. Em Vila Nova x Sport, Sampaio Corrêa x Londrina e Criciúma x Tombense, todos pela 38ª rodada da competição, o acordo era o cometimento de pênaltis ainda no primeiro tempo. Para isso, jogadores específicos foram cooptados pelos criminosos. A denúncia ao MP partiu do Vila Nova, um dos times prejudicados pelo golpe, já que o ex-meia Romário teria recebido a oferta. Ele, no entanto, sequer foi relacionado para a partida após as suspeitas.
Na mesma toada, no último dia 27, a Federação Amazonense de Futebol (FAF) rebaixou o Esporte Clube Iranduba após detectar fraude na goleada por 7 a 0 sofrida pela equipe contra o Amazonas. A manipulação aconteceu na 5ª rodada do campeonato estadual deste ano. A FAF ainda multou a agremiação em R$ 100 mil.
Enquanto isso, levantamento feito pela reportagem de O TEMPO mostra que 38 das 40 equipes das duas primeiras divisões do futebol brasileiro têm patrocínios de casas de apostas – volume superior ao quadro de abril do ano passado, quando a mesma pesquisa apontou para 35 das 40 equipes. Apenas Cuiabá e Fortaleza, ambos da elite, não estampam marcas do tipo em seus uniformes, ao menos por enquanto. O Palmeiras tem parceria com uma empresa, mas apenas para exposição digital e no espaço master da camisa do time feminino.
Atlético (Betano), Cruzeiro (Betfair) e América (Estrela Bet) venderam os espaços mais nobres de seus uniformes – o patrocínio master – para empresas do ramo. O mesmo foi adotado pelo Tombense (ValSports), mesmo após o clube ser prejudicado pelo esquema de aposta no ano passado: o zagueiro Joseph é investigado por cometer um pênalti proposital contra o Criciúma, conforme a investigação do MPGO.
São 17 casas de apostas com patrocínio nas duas primeiras divisões do futebol brasileiro. Dessas, apenas duas estão em países com regulamentação vigente: a Betfair, que patrocina o Cruzeiro, e a Estrela Bet, do América, ambas no Reino Unido. A Betano, parceira do Atlético, está em Malta, onde também está outra companhia. Das 17, 12 estão no paraíso fiscal de Curaçao, entre elas a ValSports, que estampa sua marca na camisa do Tombense.
O que diz a lei
A Lei 13.756 de 12 de dezembro de 2018 foi sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), a partir da conversação da Medida Provisória 846/2018. A legislação permitiu a operação das casas de apostas esportivas no Brasil.
Conceito de aposta de quota fixa
A lei define aposta de quota fixa como um "sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva". Ela precisa deixar claro "quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico" e é preciso acontecer "em ambiente concorrencial, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais"
Regulamentação atrasada
A lei de 2018 previa a regulamentação do Ministério da Fazenda no prazo de até dois anos, prorrogável por até igual período, a contar da data de publicação. O prazo venceu em dezembro do ano passado, mas a regulamentação não aconteceu.
Seguridade social
De acordo com a legislação, 0,1% do arrecadado pelas casas em meio físico seguem para a seguridade social. No ambiente digital, onde a imensa maioria dos palpites acontecem, o repasse é de apenas 0,05%.
Outros repasses
As casas de apostas ficam com no máximo 95% do arrecadado. A lei ainda obriga repasses de 0,82% ao Ministério da Educação, 2,55% ao Fundo Nacional da Segurança Pública e 1,63% às entidades esportivas que fecharem patrocínios com as empresas (para além do contrato firmado).
Fiscalização
A taxa de fiscalização também precisa ser paga a cada mês pelas casas de apostas. Ela varia entre R$ 54,4 mil até R$ 1,9 milhões, de acordo com a arrecadação das empresas. São oito níveis de receita.
Fonte: Lei 13.756 de 12 de dezembro de 2018