Pirenópolis (GO) – Assim como faz há mais de três décadas, o chacareiro Carlos da Mota Bastos, de 52 anos, passou todos os dias das duas primeiras semanas de julho em frente a dois tachos de cobre sobre imenso fogão a lenha, se revezando com vizinhos na feitura de doces.

O resultado esperado são 5 toneladas de doces de figo, laranja, mamão, abóbora e leite. Tudo doado por moradores de Lagolândia, um povoado a 25 km de Pirenópolis (GO), cidade turística a 130 km de Brasília. E tudo será entregue, de graça, no próximo sábado (19).

Carlos Bastos, neto de Dica, faz doce em para ser distribuído em festa criada pela “santa”. Foto: Renato Alves/O TEMPO

A confecção e distribuição dos doces integram a homenagem ao Divino Espírito Santo, à Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito, padroeiro da festa anual que acontece no terceiro fim de semana de julho. Evento criado por Benedita Cipriano Gomes, ou Santa Dica.

Os doces servidos desde os tempos de Dica se devem à veneração aos “Santos Anjos”, que sendo crianças adoravam as iguarias. Outra explicação é que os doces representam a vida que nos espera no céu, sem as amarguras na Terra. 

Dica enfrentou a ira de fazendeiros, políticos e lideranças da Igreja por ser messiânica e arrebanhar milhares de seguidores, que formaram Lagolândia ao erguer construções em volta de sua casa, onde fazia atendimentos espirituais e até “milagres”. 

A mulher que dizia ouvir anjos, espíritos de crianças mortas muito cedo, dizia ser, antes de tudo, uma cristã. Proibida de participar de festas católicas, como a Romaria de Trindade, na região metropolitana de Goiânia, criou as próprias celebrações em Lagolândia.

Nascida em 1905 e morta em 1970, com o corpo sepultado, conforme seu desejo, sob uma gameleira em frente à sua casa em Lagolândia, Dica criou ainda as festas de São Sebastião (11 a 20 de janeiro) e de São João (23 e 24 de junho), além da Folia de Reis (31 de dezembro a 6 de janeiro).

Após sua morte, seus seguidores, os “diqueiros”, e parentes, mantiveram as festas e a casa onde morou e fazia as “curas”. É no quintal do imóvel que Carlos Bastos, seu neto, e tantos outros confeccionaram os doces para a festa do próximo fim de semana.

“Aprendi a fazer rapadura com meu pai, quando tinha uns 12 anos. Assim como o pai da Dica, ele tinha um pequeno engenho de açúcar no nosso sítio. Desde então não parei. Aqui, como eu, nem todos seguem a ‘religião’ da Dica, mas quase todos a respeitam muito”, conta.

O rio Jordão goiano e a República dos Anjos

Foram essas pessoas que, em 2021, quando uma forte chuva fez o rio do Peixe alagar quase toda Lagolândia, que se uniram para ajudar todos os afetados pela enchente e reconstruir a casa onde Dica morou e fazia suas reuniões com os fiéis.  

A casa de paredes de adobe, teto baixo e piso de terra batida, ficava à margem do rio do Peixe. Com os trabalhos espirituais de Dica, ele também foi chamado de rio Jordão “por ser milagroso”. Além de abastecer toda a comunidade, nele eram batizados e “curados” seguidores dela.

Homem faz doce para ser distribuído em festa criada por Santa Dica. Foto: Renato Alves/O TEMPO

No início da juventude, Dica começou a transmitir o “recado dos anjos”. Dizia conversar com alguns deles, incluindo os espíritos de dois primos: Silvéria, que morreu com oito meses, e José Sueste, morto com um ano e seis meses, que Dica dizia ser o Anjo Rei-de-Valia.  

Ao lado do espírito de José Gregório, morador de Catalão (GO) morto em batalha, esses eram os comandantes da “tropa celestial” de Dica, que, segundo ela, protegiam os seguidores nas lutas materiais e espirituais. Com isso, Lagolândia ficou conhecida também como República dos Anjos.

Para as reuniões espirituais em sua casa, chamadas de “conselhos”, a moça tomava o banho da “purificação” no rio e deitava-se na sala da casa, onde havia um altar com a imagem de Nossa Senhora e uma cama feita sob encomenda, com 2 m de altura, na qual Dica subia com uma escada.

Com doações em dinheiro, material e arrecadação por meio de bingos, os moradores de Lagolândia doaram horas de trabalho para reerguer o imóvel, que perdeu quase todo o telhado e parte das paredes. Hoje está parecido como antes, recebendo reuniões de “diqueiros” e festas.

Uma casa para abrigar e alimentar os enfermos

Edlleuza Alves de Oliveira, de 62 anos, lembra de Dica e seus seguidores na casa onde ela ajuda a enfeitar para a festa do Divino, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. “Isso aqui vivia cheio. Mas, ao mesmo tempo, era um lugar de paz”, comenta.

Edlleuza de Oliveira enfeita a casa onde Dica morava e fazia "curas", em Lagolândia. Foto: Renato Alves/O TEMPO

Ao lado da Casa de Dica há outro casarão, maior. Ele foi erguido para abrigar aqueles que eram considerados doentes psiquiátricos, levados para tratamento com Dica. Muitos ficavam meses e até anos lá, recebendo ajuda espiritual, comida e outras assistências. Tudo de graça.

“O pessoal comparava a um hospício. Mas a Dica não via assim. Ela tratava todos iguais. Como diz a Bíblia, para ela todos eram iguais perante a Deus”, observa Edileuza. A mãe dela, Maria Madalena de Oliveira, fez cirurgias espirituais com Dica. 

Brigitt Cipriano Rocha, de 60 anos, conviveu com Dica por cinco anos. Ela é filha da única irmã viva de Dica, Bernarda, de 97 anos. Ambas moram juntas em Lagolândia. “Vó Dica era uma mulher à frente do seu tempo, empoderada, quando nem se usava este termo”, ressalta Brigitt.

Bernarda, de 97 anos, é a única irmã viva de Dica. Foto: Renato Alves/O TEMPO

A sobrinha destaca a luta de Dica por mais espaço das mulheres na sociedade, quando elas sequer tinham direito ao voto. Lembra da luta de Dica, que nunca frequentou uma escola, para garantir o acesso à educação a todos, numa região dominada por “coronéis”.

Essa luta de Dica é reconhecida com seu nome estampado no muro da escola municipal de Lagolândia. Brigitt, que é professora, lembra do velório e sepultamento da tia no povoado. “Choveu o dia inteiro. Mas nada espantava o povo. Era um misto de tristeza com festa”, relata.

Perseguida por padres, Dica construiu a única igreja de Lagolândia

Para garantir aos moradores acesso a um templo católico, Dica financiou a construção da primeira igreja de Lagolândia. Ela doou o terreno e o imóvel, com móveis e imagens sacras, à Igreja Católica. Nem assim garantiu paz. Ainda hoje há padres da região que a atacam em sermões.

Dedicada a Nossa Senhora da Imaculada, padroeira do distrito, a igreja foi erguida com adobe. Os homens do lugar retiraram madeiras de lei nas matas próximas e levantaram o templo em mutirões. Um artesão fez a imagem principal, em madeira. O sino veio do Vaticano.

No início dos anos 2000, parte da comunidade decidiu por uma reforma da igreja, que perdeu o estilo colonial. As janelas de madeira receberam vidros. Dentro, perdeu a escadaria e o mezanino, onde ficava o coral na hora das missas. Os altares de madeiras foram substituídos por cimento.

Para piorar, o imóvel foi alvo de dois furtos. Ladrões levaram as imagens de maiores valores histórico e artístico. Para evitar essas e outras perdas, moradores criaram o Instituto Santa Dica, que visa principalmente manter a memória da líder messiânica e suas obras físicas e espirituais.

Crianças brincam na escadaria da igreja de Lagolândia. Foto: Renato Alves/O TEMPO

“Tem muita gente que mora em Lagolândia que ignora a Dica e até faz campanha contra ela. Esquecem que Lagolândia só existe por causa da Dica. Todas as terras daqui, onde ergueram casas, foram doadas pela família dela”, ressalta Brigitt, que integra o instituto.

A entidade, que também promove justiça ambiental e o desenvolvimento de um modelo de turismo comunitário e sustentável, quer criar um memorial dedicado à Dica, no imóvel onde ela morou e acolheu os seguidores.

Seguidoras de Dica cuidam da praça principal 

O sociólogo João Marcos Cardoso Picarti, da Universidade Federal de Goiás (UFG), diz que o movimento de Dica pode ser interpretado “como uma experiência de resistência feminina, híbrida e insurgente, que atravessa as fronteiras entre o sagrado e o político”. 

“Sua liderança, exercida como mulher negra, camponesa e sem instrução formal, desafia os modelos tradicionais de autoridade religiosa e revela como as mulheres têm historicamente construído espiritualidades alternativas, sustentadas por práticas de cuidado, trabalho coletivo, partilha e acolhimento”, diz Picart, que tem pesquisado o fenômeno Dica. 

As duas praças de Lagolândia, contam com uma infinidade de flores de diferentes espécies, muito bem cuidadas pela Associação Feminina de Lagolândia, composta por 50 mulheres que defendem ideias da criadora do povoado.  

Túmulo de Santa Dica na praça de Lagolândia, ao lado de quadra esportiva. Foto: Renato Alves/O TEMPO

Com bancos doados por moradores – identificados com nomes das famílias –, elas são consideradas sagradas para os “diqueiros”. Em uma, em frente à igreja, há um busto de Dica, além dos jardins. Na outra, em frente à casa da “santa”, está o túmulo com os corpos dela e do marido.

Busto da Santa Dica na principal praça de Lagolândia. Foto: Renato Alves/O TEMPO

Por muito tempo, esses espaços foram completamente abandonados, virando até ponto para descarte de lixo. Hoje, muitos “diqueiros” contestam construções de equipamentos públicos, como a quadra de esportes erguida ao lado do túmulo de Dica.

Já o rio do Peixe, que ganhou esse nome pela abundância de peixes e também é considerado sagrado por muitos moradores de Lagolândia, sofre com desmatamento de matas ciliares e avanço de pedreiras, abertas com uso de dinamites.