Pirenópolis (GO) – Com menos de 24 horas de vida, a bebê nascida em uma fazenda de Goiás no início do século passado foi dada como morta, mas “ressuscitou”. O episódio se repetiu quando ela tinha 2 anos. Devotos de São Benedito, os pais deram o nome do santo a ela.
O “milagre” de Benedita Cipriano Gomes atraiu fervorosos e crédulos roceiros, em busca da bênção e de graças da menina. Ela curaria enfermidades com a mão sobre a cabeça do enfermo ou molhando de saliva o dedinho que passava sobre o local, com o sinal da cruz.
Logo ficou conhecida como Santa Dica. Um povoado surgiu ao redor da casa da então jovem que havia “ressuscitado” pela terceira vez aos 17 anos. Dica dizia conversar com anjos, que rendeu à comunidade de adeptos a alcunha de República dos Anjos.
Hoje esse lugar é Lagolândia, distrito de Pirenópolis (GO), cidade famosa por seu casario colonial. O povoado surgido com a peregrinação alimentada pelos supostos poderes sobrenaturais de Dica também atraiu a desconfiança e os temores dos setores dominantes da época.
A “santa” pregava igualdade. Dizia que a terra era propriedade de Deus e foi feita para todos. Instituiu um sistema de uso comum de solo. Aboliu o dinheiro e os impostos. Por isso, ela e seus seguidores foram perseguidos. Alguns, como Dica, chegaram a ser presos. Outros foram mortos a bala.
Mas os governantes recrutaram Dica e seguidores para lutas armadas. Com a “santa” como comandante, atuaram contra a Coluna Prestes (1925-1927) e na Revolução de 1932. Acabaram esquecidos por quase todos. Menos pelos moradores de Lagolândia, muitos ainda fiéis à Dica.
Ciência explicaria ‘ressurreições’
O corpo da “santa” descansa em uma bem arborizada e cuidada praça de Lagolândia. Em outra, vizinha, há um busto que lidera o espaço dividido entre bancos, flores e imagens sacras. Em abril, o povoado festejou os 120 anos do nascimento dela, que veio ao mundo em 13 de abril de 1905.
Túmulo da Santa Dica em praça de Lagolândia, distrito de Pirenópolis (GO). Foto: Renato Alves/O TEMPO
Benedita Cipriano Gomes era a mais velha de oito irmãos. A família morava numa região conhecida como Fazenda Mozondó. Seu pai, Benedito Cipriano Gomes, tinha um sítio com pequeno engenho de cana. Fazia rapadura e também era trançador de laços de rédeas.
Após o nascimento, quando foi dada como morta e a família se preparava para sepultar o corpo da bebê, ouviram um choro e perceberam que estava viva. Os pais creditaram o “milagre” a São Benedito, de quem eram devotos fervorosos.
Foi a segunda “ressurreição” de Dica, quando ela tinha 2 anos, que trouxe fama de santa à menina. Durante o banho do “defunto”, os familiares teriam notado que ela suava muito e frio. Mantiveram o velório e, após três dias, ela “ressuscitou”.
Médicos atribuíram as “ressurreições” à catalepsia, algo desconhecido há 100 anos e caracterizado pela paralisação dos membros e da cabeça, além da incapacidade de falar. A respiração também é afetada. O paciente pode ficar imóvel, com o episódio durando de minutos a dias.
Catolicismo, espiritismo e messianismo
Mas Dica nunca teve um diagnóstico. “O pai achava que ela estava louca. Por isso ela foi morar com os avós paternos, Bento Cipriano e Isabel Borges, que a acolheram muito bem”, conta Waldetes Aparecida Rezende, historiadora e autora do livro “Santa Dica – História e Encantamentos”.
Waldetes Rezende, historiadora e autora de livro sobre Santa Dica, em Lagolândia. Foto: Renato Alves/O TEMPO
Os avós de Dica também moravam em terras da Mozondó, a poucos quilômetros do sítio dos pais dela. A avó paterna e a tia Leocárdia, sua madrinha, lhe ensinaram as tarefas do lar e tudo sobre o catolicismo. Mas, fora de uma escola, ela não aprendeu a ler ou escrever.
“A menina franzina, corpo miúdo, cabelos encaracolados e compridos, começou a curar enfermos que iam até a casa dos avós. O povo passou a chamá-la de ‘Dica dos Anjos’, porque era pega constantemente conversando com seres invisíveis”, explica Waldetes Rezende.
Aos 17 anos, quando teria “morrido” e “ressuscitado” de novo, Dica passou a comandar legiões de devotos. Em torno de sua casa, muitos ergueram barracos de lona e ranchos de pau-a-pique cobertos de palha de buriti, farta na região. Era o começo de Lagolândia.
Com gente chegando de todo o país, a maioria sem nada, Dica também oferecia teto e comida para todos. Seguidores ergueram uma casa rústica, feita de adobe, onde virou moradia e local de encontros espirituais. Com o tempo, ficou conhecida como Casa de Cura e Salão da Dica.
O rio Jordão goiano e a República dos Anjos
A casa de teto baixo e piso de terra batida, ficava à margem do rio do Peixe. Com os trabalhos espirituais de Dica, ele também foi chamado de rio Jordão, “por ser milagroso”. Além de abastecer toda a comunidade, nele eram batizados e “curados” seguidores dela.
Sala da casa onde Dica morava e recebia fiéis, com foto dela na parede: fiel ornamenta espaço para uma das festas religiosas criadas pela “santa”. Foto: Renato Alves/O TEMPO
“Repetindo o que ouviam de Dica, os mais velhos de Lagolândia acreditam e dizem que os guias espirituais falam que haverá um futuro com grandes períodos de seca, provocando a luta do homem pela água, mas este rio abençoado nunca secará”, relata Waldetes.
No início da juventude, Dica começou a transmitir o “recado dos anjos”. Dizia conversar com alguns deles, incluindo os espíritos de dois primos: Silvéria, que morreu com oito meses, e José Sueste, morto com um ano e seis meses, que Dica dizia ser o Anjo Rei-de-Valia.
Ao lado do espírito de José Gregório, morador de Catalão (GO) morto em batalha, esses eram os comandantes da “tropa celestial” de Dica, que, segundo ela, protegiam os seguidores nas lutas materiais e espirituais. Com isso, Lagolândia ficou conhecida também como República dos Anjos.
Para as reuniões espirituais em sua casa, chamadas de “conselhos”, a moça tomava o banho da “purificação” no rio e deitava-se na sala da casa, onde havia um altar com a imagem de Nossa Senhora e uma cama feita sob encomenda, com 2 m de altura, na qual Dica subia com uma escada.
Dica sempre rejeitou o rótulo de ‘santa’
Seguidores contam que, em poucos minutos, ela ficava paralisada, como morta, quando começava a manifestação espiritual. Sem que a boca se mexesse, saía uma voz do corpo. O tom se alterava. Acreditava-se que eram os diferentes guias espirituais se manifestando.
“Dica passava as mensagens recebidas. As que precisavam ser anotadas eram copiadas por Alfredo dos Santos, único seguidor de sua confiança que sabia ler e escrever”, relatou um jornalista em reportagem publicada no jornal “O Combate”, de São Paulo, em 30 de abril de 1925.
Fachada da casa onde Dica morava e recebia fiéis. Foto: Renato Alves/OTEMPO
Apesar de assim ser chamada por alguns – inclusive em tom de deboche, no caso de alguns jornais da época – Dica nunca se autointitulou santa. Nem mesmo gostava de ser tratada como tal. Deixou isso claro em diferentes entrevistas.
“Eu não sou santa. Se pratico alguma caridade, como dizem os da minha terra, tudo faço em estado de inconsciência”, declarou Dica ao jornal “A Noite”, do Rio de Janeiro, em entrevista publicada na edição de 28 de setembro de 1926.
Terra para todos, com produção compartilhada
Os avós paternos de Dica não se incomodavam com a invasão de forasteiros em busca de conselhos e curas com a neta. Eles acreditavam que ela tinha um dom especial. E também não se opunham à presença dos fiéis em suas terras. Nem mesmo quando começaram a erguer casas.
Com Dica na liderança, a fazenda não tinha mais cercas e todos os recursos, oferendas e colheitas eram revertidos à comunidade, onde era proibido trabalhar aos sábados, domingos e dias santos – algo incomum para os trabalhadores braçais da época.
Muitos funcionários das fazendas vizinhas abandonavam os empregos em que eram mantidos em regimes análogos à escravidão — a classificação não existia nem tais condições eram crime — para se juntar a Dica. Seus seguidores passaram a ser conhecidos como “diqueiros”.
Ela dizia ser uma gente escolhida por Deus para ser salva quando chegasse o fim do mundo. Pregava que a entrada ao paraíso estava por vir, mas sem tempo determinado. A plenitude, afirmava, só seria alcançada quando não houvesse mais diferenças entre os seres humanos.
Jornais ligados a fazendeiros fizeram campanha contra Dica
Logo surgiu uma campanha contrária à Dica, acampada por jornais mineiros e goianos, muitos deles pertencentes a grandes fazendeiros, os “coronéis, ícones do movimento conhecido como coronelismo, forte em Goiás, um estado de pequena expressão nacional econômica e política.
Isolado no centro país, com poucas e precárias estradas, as terras do estado quase nada valiam. Não havia indústria. Os funcionários das fazendas compravam o que precisavam geralmente em vendas onde trabalhavam, a valores estratosféricos. O gado leiteiro dominava os pastos.
A política era ditada pelo “voto de cabresto”. Custeando o processo eleitoral, os “coronéis” recebiam cargos e benefícios para onde moravam e mandavam. Seus candidatos quase sempre ganhavam, com o controle dos votos com dinheiro, medo e fraudes, em um sistema todo de papel.
Como as milícias dos tempos atuais, os “coronéis” tinham armas e jagunços para controlar a população pelo pânico. Quem não se curvava a eles era morto ou expulso.
Governo goiano recorreu a Dica contra a Coluna Prestes
No entanto, o governo de Goiás e os “coronéis” recorreram à Dica quando se viram ameaçados pela passagem da Coluna Prestes pelo estado, em 1925. O movimento surgiu com a insatisfação com o governo de Artur Bernardes e o regime oligárquico, chamado de ”café com leite”.
A Coluna Prestes pregava o voto secreto, a defesa do ensino público e a obrigatoriedade do ensino secundário para a população, além do fim da miséria e da injustiça social. Apesar de tenentista e ter os militares de baixa oficialidade como lideranças, representava a classe média.
Os tenentes defendiam um legítimo poder civil baseado no liberalismo. Ao lado deles, marchavam civis. Em dois anos e meio, 1.500 homens percorreram cerca de 25 mil quilômetros, por 13 estados do Brasil, incluindo Goiás, onde passaram em duas ocasiões.
Amedrontado com a proximidade deles, o governo de Goiás organizou, em agosto de 1925, duas “Colunas Patriotas”, para enfrentar a Coluna Prestes. Uma delas, baseada na Cidade de Goiás, a capital do estado na época. A segunda cuidaria do sul do estado.
Santa foi convocada para lutar ao lado do avô de Ronaldo Caiado
Foi para a primeira coluna que o governo estadual convocou Dica. Ela seria comandada pelo senador Antônio Ramos Caiado (1874-1967), o “coronel” Totó Caiado, avô do governador Ronaldo Caiado (União Brasil). Outros políticos, além de juízes e médicos, teriam suas tropas.
À época, os governadores eram nomeados pelo presidente da República e chamados também de presidente. O presidente de Goiás era Brasil Ramos Caiado, irmão de Totó – Brasil ficou no cargo de 1925 a 1929. Goiás estava sob influência dos Caiados desde o século XIX.
Já Dica, ainda sob forte perseguição da Igreja, de fazendeiros e da imprensa, reuniu e liderou aproximadamente 400 homens armados contra as ameaças da Coluna Prestes. “Ela viu ali uma oportunidade de diminuir a pressão das classes dominantes”, diz a historiadora Waldetes Rezende.
Dica foi para a frente de batalha uniformizada e com patente, com a missão de impedir a entrada dos revoltosos na Cidade de Goiás. Ficou no comando de seus homens, integrando o Batalhão Patriota, também denominado de Coluna Caiado.
Após servirem ao Estado, Dica e seguidores foram enxotados
Além da intenção de melhorar a relação com os poderosos locais, Dica e seus homens foram à guerra acreditando na propaganda estatal. Ela difundia que a Coluna Prestes barbarizou as localidades pelas quais passava, matando, estuprando e sequestrando.
Alguns historiadores afirmam haver provas de saques, estupros, assassinatos e outras atrocidades cometidas pelos rebeldes, apesar de tais delitos serem fortemente punidos pelas lideranças do movimento. Contudo, em Goiás não houve nada do tipo. Nem mesmo confronto.
Mas, enquanto Totó Caiado saiu do episódio como herói de guerra, mesmo sem combate, Dica e seus seguidores foram enxotados da capital goiana. Autoridades mandaram todos voltarem à região de Lagolândia e desfazer a comunidade que crescia em volta da casa dela.
Dica e seus seguidores andaram por mais de 80 km a pé, sem nenhuma ajuda daqueles que o convocaram para uma guerra. Mas ninguém foi embora do povoado nem deixou de participar das sessões espirituais.
Desempenho de Dica à frente de tropa aumentou perseguição
Após o episódio da Coluna Prestes, Dica saiu ainda mais forte e admirada pela população, especialmente a mais pobre, o que elevou o temor e a ira do restante da sociedade goiana. Totó Caiado seria um dos seus grandes inimigos, ao lado de lideranças da Igreja.
“Dica incomodava a Igreja Católica porque sua liderança carismática e autônoma desafiava diretamente a autoridade e o monopólio eclesiástico sobre a fé e organização religiosa”, observa o sociólogo João Marcos Cardoso Picarti, da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Picarti, que tem pesquisado o fenômeno Dica, diz que ela incomodava especialmente os missionários redentoristas de Trindade, cidade na região metropolitana de Goiânia que abriga o Santuário da Basílica do Divino Pai Eterno e é chamada de Capital da Fé de Goiás.
O sociólogo ressalta que a atuação de Dica questionava também os modelos sociais e econômicos vigentes. “Por ser mulher, negra e camponesa, ela rompia com os padrões patriarcais que reservavam à Igreja institucional o controle das mediações religiosas”, diz Picarti.
Políticos, “coronéis” e jornais citavam Canudos
Para a igreja e os poderosos de Goiás, era inadmissível que uma mulher comandasse homens, além de defender igualdade e outras questões. Vale ressaltar que à época a mulher não tinha sequer o direito à participação política, ao voto, o que só veio a acontecer em 1932.
Ao término da organização contra a Coluna Prestes, o jornal Santuário de Trindade, editado em goiânia por padres redentoristas, publicaram artigos chamando dica de “bruxa”, “louca” e “prostituta”, evocando a necessidade de acabar de vez com “essa mancha na sociedade goiana”.
Religiosos, políticos e “coronéis” goianos temiam uma nova Canudos, o povoado criado por Antônio Conselheiro (1830-1897) no sertão da Bahia, em uma fazenda improdutiva ocupada por 25 mil pessoas. Canudos envolvia a luta contra a fome, a miséria e a seca nordestina.
Com várias investidas das forças governamentais contra os miseráveis adeptos de Conselheiro, entre novembro de 1896 e outubro de 1897, a Guerra de Canudos acabou com a morte do beato e quase todos os seus seguidores, incluindo crianças.
O jornal “O Democrata”, de Totó Caiado, alertou para o “perigo” que Dica representava. Em artigo publicado em 1925, depois de ela ela atender o chamado para atuar contra a Coluna Prestes, o periódico a comparou a Lênin, o líder da Revolução Russa, citando Canudos:
“[...] Dica se tornou uma espécie de Lênin de sexo diferente. Prega a partilha equitativa das terras pelo povo. [...] É preciso que lembremos de que um homem sugestionado, crente, vale por dez. É sobre humana a sua força. Canudos é de ontem, e nós sabemos o que foi Canudos.”
Militares atacaram seguidores de Dica com tiros
Assim como fez com Canudos, o Estado agiu contra Dica e seus seguidores, quando eles já eram 15 mil em Lagolândia. Em 14 de outubro de 1925, a guarda estadual chegou ao povoado para prender a líder, acusada de atentado à saúde pública.
A comunidade vivia em extrema miséria, sem nenhum tipo de saneamento básico. A maioria das casas do povoado era feita de adobe, propícia à procriação de diversos insetos, como também para escorpiões. Pessoas e animais bebiam a mesma água.
Situação similar à que quase todos eram submetidos nas fazendas onde trabalhavam, muitas vezes sem receber salário ou mesmo parte daquilo que plantava, cuidava e colhia, acumulando dívidas com os patrões nas compras nas vendas instaladas nas propriedades rurais.
Alegando ter ouvido um tiro disparado por um “diqueiro”, os cerca de 140 militares revidaram, inclusive com metralhadora. Desesperados, Dica e devotos se lançaram nas águas do rio do Peixe, que estava mais cheio do que o normal por causa das fortes chuvas da madrugada.
Anjos e cabelo de Dica impediram balas, segundo fiéis
Segundo o mito, no evento que ficou conhecido como “O Dia do Fogo”, anjos paravam as balas para proteger os moradores. Dica reteve outras tantas com os longos cabelos negros lisos. Os tiros ricochetearam numa espécie de escudo celestial.
Ao seguirem pelo rio, mesmo os fiéis que não sabiam nadar se salvaram ao se segurarem nos cabelos da santa. Ela não recebeu nenhum tiro, apesar de terminar com a o vestido branco cheio de furos de balas, ainda de acordo com relatos de seus seguidores.
Mas registros oficiais dão conta de seis pessoas mortas baleadas, cinco afogadas no rio e cinco feridas gravemente, todos “diqueiros”. Dica e seguidores sobreviventes ficaram dois dias vagando pelo mato. Ela se apresentou à delegacia de Pirenópolis em 20 de outubro de 1925.
Dica foi levada para a cidade de Goiás, onde ficou presa acusada de “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios [...] para inculcar curas de moléstias curáveis ou incuráveis [...]”. Ela foi condenada a um ano e dois meses de prisão, com outras seis pessoas, incluindo seu pai – ele aceitara a suposta mediunidade da filha – acusadas de cumplicidade.
Justiça goiana ignorou caso de estupro contra Dica
Em sua defesa, Benedita Cipriano afirmou não mais fazer curas, muito menos falar com os anjos. As alegações constam em trecho do processo do caso, que traz informação de estupro sofrido por ela. Com o fim da sua “pureza”, a virgindade, disse Dica, cessou a comunicação com os anjos
Dica acusou Manuel José Torres, o Cacheado, pelo estupro. Até hoje, seguidores de Dica falam do episódio, com grande rancor de Cacheado. Ele seria apaixonado pela líder espiritual, que nunca quis um relacionamento com o dito seguidor.
O Judiciário goiano ignorou a denúncia de estupro. Dica ficou nove meses presa em uma solitária. Em agosto de 1926, a segunda instância da justiça de Goiás julgou improcedente a denúncia contra ela e os demais, por falta de provas. A “loucura” apontada por inimigos seria usada a favor dela.
A defesa usou um laudo psiquiátrico que apontava Dica como alguém que padecia de “neurose histérica, cujo estado psicológico é representado pela forma de delírio religioso pelo qual é inteiramente empolgada, delírio esse que é verdadeiro equivalente clínico ao ataque histérico”.
Absolvida pela Justiça, mas expulsa de Goiás
Mas, como exigiam os poderosos da sociedade goiana, sua absolvição foi condicionada à saída do estado de Goiás, em acordo costurado pelo “presidente” Brasil Caiado, com exílio definido na cidade do Rio de Janeiro, a capital do país – Brasília foi inaugurada em 21 de abril de 1960.
Dica seguiu com oito pessoas – incluindo duas crianças – para o Rio. Eles receberam o apoio da Federação Espírita do Brasil. A entidade assumiu as despesas do grupo, que chegou à cidade em 29 de setembro de 1926. Ela era esperada por milhares de enfermos.
O simples hotel onde Dica se hospedava foi cercado por milhares de doentes e meros curiosos. Foi preciso intervenção policial para evitar uma invasão. A imprensa local a transformou em celebridade, com reportagens diárias sobre cada passo da “santa” na cidade.
Dica assumiu diversos compromissos em centros espíritos no Rio. Em cada, uma multidão aparecia para ouvi-la ou receber atendimentos espirituais, o que só aumentava seu espaço nos periódicos.
Defesa de causas feministas após passar por Rio e São Paulo,
Ela rompeu com a Federação Espírita do Brasil e foi acolhida pela Liga Espírita do Brasil. Mas, com o aumento do assédio de diversos setores no Rio, a entidade a aconselhou a voltar para Goiás. Dica, que demonstrava não seguir regras de qualquer instituição, rompeu também com esta.
Sem dinheiro para se manterem no Rio, Dica e comitiva viajaram para São Paulo, a convite de um homem que buscava tratamento espiritual. Eles desembarcaram na capital paulista em 11 de novembro de 1926. Novamente em um hotel, a “santa” recebeu grande atenção da imprensa.
Em uma de tantas entrevistas que deu durante a estada, ela reforçou não seguir uma religião específica, sendo contra a “suntuosidade dos templos, o ritual, as praxes religiosas”, assim como o “sectarismo, o partidarismo religioso”. Declarações que só aumentaram a ira da Igreja Católica.
No entanto, ela reiterou ser cristã, professar a “religião que Jesus pregou na Terra, por aquela religião que não exige mais que a fé, a esperança, e que se exerce no recato do nosso coração”. Reiterou não ser “santa” e não aceitar dinheiro por atendimentos espirituais.
Após exílio, Dica voltou a Goiás e foi presa novamente
A imprensa destacou que Dica fez centenas de “curas” enquanto esteve em São Paulo, onde ficou apenas por duas semanas. À comitiva dela, desde o Rio de Janeiro, se juntava o jornalista carioca Mário Mendes. Todos seguiram para Lagolândia.
“Mesmo rechaçada pelos poderosos goianos, ela voltava mais forte, com apoio da imprensa do Rio e São Paulo. Os tempos nessas cidades também lhe abriram a mente. Dica se tornou uma feminista, sem naber da existência de tal termo”, observa Waldetes Rezende.
Com base em boatos de que Dica comandaria uma tropa ao lado de golpistas contra o governo central, o governador de Goiás, Brasil Caiado, mandou combatentes para Lagolândia. Com isso, ela foi presa de novo, em 1º de fevereiro de 1927.
Cinco dias depois, Dica era colocada em liberdade, por falta de provas, mas sob a condição de novamente deixar Goiás. Ela e o namorado Mário Mendes ficaram dez dias em local desconhecido. Eles conseguiram retornar à Lagolândia de forma escondida, com a ajuda de “diqueiros”.
Grávida, Dica teve que fugir da ameaça de morte do pai
Surpreendentemente, surgiu a notícia da primeira gravidez de Dica. Ela tinha 23 anos, mas não era casada. Por isso, o pai da moça jurou de morte Mário Mendes. O casal mudou-se às pressas para Pilar de Goiás, no norte do estado, para evitar o pior.
Apenas meses depois, quando o pai dela “perdoou” a filha, Dica e Mário voltaram à Lagolândia e se casaram. A filha deles, Maria Quitéria, nasceu em 2 de janeiro de 1928. Eles teriam mais quatro filhos, que se juntaram aos outros dois que o jornalista teve no primeiro casamento.
Com família, Dica refez a comunidade, formou novo exército e recebeu a patente de cabo do Exército, que requisitou seus serviços. Sob o comando dela, havia cerca de 400 homens, conhecidos como pés com palha e pés sem palha, método usado para distinguir entre esquerda e direita.
Como os soldados eram analfabetos, confundiam esquerda com direita. Benedicta decidiu usar o estratagema de amarrar um pedaço de palha em um dos pés para poder ensinar-lhes a marchar. Motivo de chacota para os adversários, mas extremamente eficaz.
Dica comandou tropa em São Paulo na Revolução de 1932
Incorporado ao batalhão de Siqueira Campos para lutar ao lado dos legalistas na Revolução Constitucionalista de São Paulo, também conhecida como Revolução de 1932, a tropa comandada por Dica rumou para Uberaba, no Triângulo Mineiro, com 150 dos seus melhores soldados.
O movimento armado ocorrido em São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, entre julho e outubro de 1932, visava derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte, atendendo aos interesses dos grandes fazendeiros.
Vargas liderou o golpe de Estado decorrente da Revolução de 1930, que derrubou o presidente Washington Luís; impediu a posse do sucessor eleito em março de 1930, Júlio Prestes; depôs governadores; fechou o Congresso, as assembleias estaduais; e cassou a Constituição de 1891.
Vargas assumiu o governo provisório nacional em novembro de 1930 com amplos poderes, pondo fim à República Velha e à política do “café com leite”. Dessa vez, Dica lutava contra os poderes de fazendeiros que tanto a perseguiam. Ela recebeu a patente de capitã. O marido, de 1º tenente.
Em Uberaba e Uberlândia, muitos mineiros pediram para se alistar no pelotão comandado por Dica, por acreditar que ele tinha a proteção dos “anjos”. O grupamento saiu de Uberaba para travar combates na Ponte do Jaraguá, Itajobi e Chapadão, em território paulista, sem baixa.
Em Jaraguá, os homens de Dica atravessaram uma ponte minada. Reza a lenda que Dica mandou um soldado andar pela construção de olhos vendados e, como nenhuma bomba detonou, o restante fez o mesmo. A ponte ruiu após passar o último.
Marido virou prefeito e quase foi linchado após golpe de Vargas
Finda a guerra, Dica passou a atuar na política. Seus seguidores votavam em quem ela mandasse, assim como na prática do “voto de cabresto”. A diferença é que os apoiadores de Dica não votavam nos candidatos dela por medo, nem por dinheiro, mas por pura fé.
Dessa forma, políticos goianos procuravam Dica em busca de votos. Em troca, entre outras coisas, ela conseguiu ver o marido nomeado diretor da imprensa oficial de Goiás, e, depois, prefeito de Pirenópolis, em agosto de 1934. Ele ficou no cargo até março de 1936.
Mas, com o golpe de Estado de 1937, que instaurou o Estado Novo e foi liderado por Vargas – após cumprir o governo provisório entre 1930 e 1934, ser eleito em 1934 e dar o autogolpe –, uma família local que havia perdido o comando da prefeitura decidiu derrubar o marido de Mendes.
Essa família incitou a população, de maioria católica, a linchar Mário Mendes, que, alertado, conseguiu fugir correndo de Pirenópolis, só com a roupa do corpo. No caminho, conseguiu um cavalo emprestado para chegar à Lagolândia.
Mário vendeu Dica para ex-sócio em garimpo
No período do mandato de marido, Dica morou com os filhos em Pirenópolis. Sem a líder, Lagolândia entrou em decadência. “Não se plantava mais coletivamente e a miséria estava na casa da maioria das famílias”, conta a historiadora Waldetes Rezende.
Para piorar, o casal perdeu todos os pertences, que estavam na casa de Pirenópolis, para onde não podiam voltar por causa das ameaças de morte. Sem dinheiro, Mário Mendes decidiu se aventurar em um garimpo de diamantes na cidade de Estrela do Norte, no Pará.
Toda a família foi junto. Em sociedade com Francisco Luiz Teixeira, Mário conseguiu poucas pepitas no garimpo, insuficiente para acertar as dívidas, que eram grandes devido ao vício do marido de Dica em jogos. Ele decidiu vender a esposa ao sócio, que assumiu todos os filhos deles.
“Mário já havia tentado vender Dica outras duas vezes. Ela foi vista como mercadoria que iria dar prestígio àquele que a possuísse. Porém, Dica não aceitou. Dessa vez, creio, ela pensou nos filhos, na situação de penumbra em que viviam. E confiava em Francisco”, observa Waldetes Rezende.
Cirurgias espirituais e tratamentos com ervas em Goiânia
Mário voltou para o Rio de Janeiro, enquanto Dica, o novo marido e os filhos foram morar em Goiânia. Logo ela começou a receber seguidores na casa alugada na capital goiana. Para manter a casa e os enfermos, fazia e vendia marmitas para operários de obras próximas.
Na casa de Goiânia, Dica fazia cirurgias espirituais e tratamento com ervas. Os que precisavam ser “operados” ficavam na casa de Dica até terem alta por parte dos “médicos do céu”. Já em Lagolândia, onde ia cada vez menos, ela mantinha apenas os “conselhos”, com os transes.
Aquela multidão desagradou a vizinhança de Dica em Goiânia. A casa era pequena para receber tanta gente. Com doações, ela comprou um lote e construiu, em regime de mutirão, um galpão no bairro Fama. Ao lado ergueu uma casa, onde moraria até o fim da vida.
Ao mesmo tempo, surgiram vários barracos ao redor, moradias de seguidores. Caminhões vindos de toda parte do Brasil traziam pessoas que acreditavam no poder de cura de Dica. Lagolândia ia perdendo importância e moradores.
Dica e marido foram acusados de tramar assassinato de desafeto
O marido de Dica pediu para nomeá-lo como subdelegado de Lagolândia, um cargo fictício. Apelidado de Chico Teixeira e Chico da Dica, ele era analfabeto e truculento. Com camisas e calças de tecido de algodão cru feitas no tear, carregava sempre um facão na cintura.
Como suposto representante da lei em Lagolândia, Chico Teixeira foi acusado de assassinato. Ele e Dica foram apontados como mandantes da morte de um jovem. Quatro subalternos de Chico seriam os executados do crime ocorrido em 27 de novembro de 1950.
A vítima era o dono de uma farmácia em Lagolândia, de uma família influente em Pirenópolis. Por causa de divergências políticas e bebedeiras que acabavam em brigas, era malvisto por Dica e o marido. Ambos teriam mandado recado aos parentes do homem para tirá-lo de Lagolândia.
Em resposta, teriam dito que, se fosse tão corajosa como diziam, Dica deveria matá-lo. Poucos dias depois, o comerciante teria passado pela rua de Dica, insultado as filhas dela e ido tomar banho nu no rio do Peixe, causando revolta na população.
Por fim, ele ainda teria andado pelas ruas de Lagolândia ameaçando com uma peixeira quem via pela frente. Foi preso por Chico Teixeira. Solto logo em seguida, pegou um cavalo, foi a outro povoado e recrutou jagunços para matar o subdelegado e a esposa.
Alertada pelos seus “guias”, Dica acionou o marido, que recrutou homens armados. Ao chegarem a Lagolândia, o comerciante e seus jagunços foram surpreendidos. Um tiro de carabina matou o dono da farmácia. Seu corpo ficou três dias na rua, à espera dos parentes do defunto e jagunços.
Dica ganhou a liberdade após o filho ser morto por vingança
Sem ninguém aparecer, Chico Teixeira pediu a um médico para levar o corpo e entregá-lo à família, em Pirenópolis. Dias depois apareceram militares com mandados de prisão contra Dica, o marido e os demais suspeitos de envolvimento no crime.
O grupo quase foi linchado ao chegar em Pirenópolis. Políticos amigos de Dica intervieram para ela e os demais não serem mortos dentro da cadeia. Todos foram transferidos para Goiânia. Ficaram presos até janeiro de 1953. Acabaram soltos por ordem do governador, Pedro Ludovico.
A decisão foi tomada após o assassinato de Pedro, filho de Dica. Jagunços executaram o jovem a mando da família do inimigo. O rapaz estava em casa quando cerca de 20 homens armados chegaram. Ele atirou e matou um. Mas não conseguiu escapar. Morreu na frente da esposa e do filho.
Dica, que não estava em Lagolândia quando o filho foi assassinado, não podia voltar ao povoado, mesmo estando em liberdade. Ela e o marido estavam jurados de morte. Mas apareceu outro político, Olímpio Jaime, de família com posses em Pirenópolis, para ajudá-los.
Lagolândia perdeu emancipação logo após virar município
Escoltada por cerca de 30 fiéis seguidores, o casal voltou a Lagolândia na carroceria de uma caminhão, pernoitando em Pirenópolis. A partir de então, Dica e Chico Teixeira começaram a passar temporadas em Lagolândia, com residência fixa em Goiânia.
Já em 1963, na condição de deputado estadual Olímpio Jaime conseguiu a emancipação de Lagolândia, em agradecimento aos votos conseguidos por Dica. No entanto, quatro anos depois, perdeu a autonomia, voltando a ser distrito de Pirenópolis.
O movimento para queda da emancipação teria sido articulado pelos familiares do comerciante assassinado a mando de Dica. Já Olímpio Jaime não reagiu porque se sentiria traído por ela por apoiar outro nome para a Assembleia Legislativa de Goiás em eleição recente.
A queda de Lagolândia como município foi a maior derrota política de Dica e do lugar, que perdeu todos os maquinários, cartórios e delegacia. Também viu cerca de 60% dos habitantes partirem em menos de cinco anos. Nem Dica ficou no povoado.
Enterrada com os pés virados para a casa onde curava fiéis
Ela e Chico Teixeira viveram juntos até a morte da “santa”, aos 65 anos, em 9 de novembro de 1970, em Goiânia. Ela teve câncer no intestino. Não resistiu a uma cirurgia. Morreu antes do fim da operação. Como desejava, seu corpo foi levado para Lagolândia.
Ainda seguindo instruções dela, o corpo foi enterrado sob uma gameleira em frente à sua casa em Lagolândia, com a cabeça voltada para a igreja que mandou construir e os pés de frente para a moradia. Seus seguidores dizem que seu espírito voltava andando para o local onde ela fazia curas.
Chico Teixeira morreu em 1983, sendo enterrado com Dica. Apareceram filhos do casamento anterior dele, reivindicando os bens do casal, mas nada conseguiram. Chefes de terreiros de umbanda também foram à Lagolândia dizendo substituir Dica, sem convencer os “diqueiros”.
Alguns estudiosos, assim como jornais, comparam Dica à Joana d’Arc (1412-1431), a camponesa francesa famosa após liderar tropas contra os ingleses na Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Ela alegava ter visões e ouvir vozes. Conquistou importantes vitórias para a França.
No entanto, aos 19 anos, foi capturada por franceses simpáticos aos ingleses, levada a julgamento e condenada à morte na fogueira por bruxaria. Mas, diferentemente de Joana d’Arc, canonizada no começo do século XX, Dica nunca foi exaltada pela Igreja Católica.