BRASÍLIA – O relatório do governo dos Estados Unidos que critica decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), também chama a atenção para a violência policial de São Paulo, durante a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), para apontar suposta piora do Brasil na área dos direitos humanos.

O documento elaborado pela administração de Donald Trump cita “relatos confiáveis de: assassinatos arbitrários ou ilegais; tortura ou tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante; prisão ou detenção arbitrária; e sérias restrições à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, incluindo violência ou ameaças de violência contra jornalistas” no Brasil.

O tópico “Execuções Extrajudiciais” do documento publicado pelo Departamento de Estado norte-americano nesta terça-feira (12/8), cita as mortes causadas pelas operações Escudo e Verão, da Polícia Militar de São Paulo, que mataram ao menos 28 pessoas. As ações no litoral paulista foram deflagradas após a morte de policiais militares.

“Alguns homicídios foram atribuídos a uma operação policial contra organizações criminosas transnacionais no estado de São Paulo, no primeiro semestre do ano, e a uma operação policial realizada de julho de 2023 a abril na Baixada Santista, região costeira que inclui a cidade portuária de Santos”, diz o relatório. 

O documento destaca que no ano passado um tribunal de São Paulo acusou dois policiais da Rota (tropa de elite da PM paulista) de homicídio qualificado e obstrução de provas pela morte de Fábio Oliveira Ferreira, morto na operação Escudo em julho de 2023.

“Um dos réus era o capitão Marcos Correa de Moraes Verardino, um dos coordenadores da operação, que teria disparado três tiros contra Ferreira após ele se render. O outro réu, o Cabo Ivan Pereira da Silva, também da Rota, teria atirado duas vezes no peito da vítima enquanto ela estava caída no chão”, narra o relatório. Os policiais foram absolvidos na Justiça.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que as mortes por policiais nas operações Escudo e Verão foram investigadas de forma rigorosa e que a PM atua dentro da legalidade. Em julho de 2025, o Ministério Público de SP arquivou todas as denúncias que investigavam mortes decorrentes das operações Escudo e Verão. A decisão foi tomada pelo procurador-geral do estado, Paulo Sérgio de Oliveira e Castro. 

O número de mortes por intervenção de policiais aumentou 61,31% em São Paulo, segundo o Mapa da Segurança Pública de 2025, do Ministério da Justiça. 

Caso Marielle, milícias e grupo de extermínio

Ainda em relação ao Brasil, o relatório do governo Trump também cita o assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, em 2018, no centro do Rio de Janeiro, que teve milicianos e políticos como mentores e executores, segundo investigação.

“Em março [de 2024], a polícia prendeu Chiquinho Brazão, deputado federal, e seu irmão, Domingos Brazão, membro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, por seu suposto papel na ordem do assassinato de Franco em 2018”, lembra o documento.

Os irmãos Brazão se tornaram réus no STF por homicídio qualificado e tentativa de homicídio. “[...] dois ex-policiais foram condenados pelos assassinatos. Ronnie Lessa foi condenado a 78 anos e nove meses por disparar os tiros que mataram Franco e Gomes e feriram uma assessora de Franco. Élcio de Queiroz foi condenado a 59 anos e oito meses por dirigir o carro da fuga”, lembra o relatório.

O governo Trump também fala de uma operação da Polícia Civil de Roraima para demitir um grupo de policiais militares do estado suspeitos de integrar uma milícia e um grupo de extermínio.

“Mais de 100 policiais foram investigados e várias prisões foram efetuadas. A investigação apurou casos em que policiais supostamente forneceram segurança armada para garimpeiros ilegais, roubaram e torturaram invasores concorrentes e roubaram os próprios chefes de garimpeiros”, diz o documento.

O Departamento de Estado norte-americano elabora um relatório anual sobre questões de direitos humanos no mundo. No caso do elaborado neste ano, ele foi adiado por meses e sofreu modificações por ordem do presidente Donald Trump.

Sob a justificativa a ameaça aos direitos humanos, Trump aplicou tarifas de 50% sobre produtos brasileiros. Afirmou que a medida foi tomada com base numa alegada “perseguição” ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a decisões do STF contra empresas norte-americanas de tecnologia.

Até a manhã desta quarta-feira (13), o Ministério das Relações Exteriores e o STF não haviam se pronunciado sobre o conteúdo do documento norte-americano.

Relatório exalta governo de El Salvador e poupa Israel

Enquanto avança em críticas e sanções ao Brasil e autoridades brasileiras, Donald Trump poupa aliados que desrespeitam os direitos humanos nas mais diversas formas.

O mesmo relatório que critica a atuação de Moraes e cita a violência policial no Brasil, exalta governos aliados, mesmo quando há restrições de liberdades individuais, como o de Nayib Bukele, em El Salvador. 

O documento não tem qualquer menção à grave crise humanitária ou ao número de mortos na Faixa de Gaza. O ataque do Hamas em outubro de 2023, que desencadeou a guerra, provocou a morte de 1.219 pessoas. A ofensiva israelense matou mais de 61.500 palestinos, segundo números do Ministério da Saúde de Gaza, considerados confiáveis pela ONU.

O relatório trumpista disse não ter identificado “abusos significativos” em El Salvador, onde organizações humanitárias acusam o governo local de violar os direitos de cidadãos e estrangeiros de forma recorrente. 

O Departamento de Estado norte-americano afirma que, no caso de El Salvador, “o governo tomou medidas confiáveis para identificar e punir autoridades que cometeram violações dos direitos humanos”.

Segundo a Human Rights Watch, mais de 81 mil pessoas foram presas – incluindo 3 mil menores de idade – pela administração  Bukele, que alterou leis para prender pessoas mesmo sem mandados.

Hoje, 1,7% da população salvadorenha está atrás das grades, a maior taxa de encarceramento do planeta. Bukele alega que a política controlou a violência das gangues, e ajudou a reduzir a criminalidade no país.

Boa parte dos detentos estão no Centro de Confinamento de Terroristas (Cecot), uma megaprisão onde são corriqueiros os abusos. Trump mandou enviar para lá lá imigrantes detidos nos EUA.

Cidadãos venezuelanos que ficaram semanas no local afirmaram terem sido submetidos a violência por parte dos agentes, além de outras formas de tortura, como privação do sono e de alimentação adequada.

El Salvador está recebendo US$ 6 milhões dos EUA para abrigar os migrantes na megaprisão de segurança máxima.

Acusações contra a África do Sul e democracia europeia 

Por outro lado, o Departamento de Estado decidiu acusar até democracias consolidadas na Europa de piora na questão de direitos humanos. Ele cita países dirigidos por partidos não alinhados à ideologia trumpista.

Na França e na Alemanha, o relatório cita “relatos confiáveis de restrições graves à liberdade de expressão, incluindo aplicação ou ameaça de leis criminais ou civis para limitar a expressão; e crimes, violência ou ameaças de violência motivadas pelo antissemitismo”. 

No Reino Unido, o Departamento de Estado norte-americano menciona leis para restringir discursos políticos considerados “de ódio” ou “ofensivos” como se fossem “limitações à liberdade de expressão”.

Já na África do Sul, cujo governo Trump acusou de discriminação racial contra cidadãos brancos, o relatório afirmou que a situação dos direitos humanos piorou significativamente. 

Trecho do documento diz que “a África do Sul deu um passo substancialmente preocupante em direção à expropriação de terras sobre africâneres e novos abusos contra minorias raciais no país.”

Foram os africâneres – fazendeiros sul-africanos de ascendência europeia – que tomaram terras dos povos originários da África do Sul e criaram o apartheid, o sistema de segregação que expropriou bens da maioria negra e lhe tirou quase todos os direitos civis.

No início deste ano, Trump emitiu uma ordem executiva que pedia aos EUA que reassentassem africâneres, descrevendo-os como vítimas de “violência contra proprietários de terras racialmente desfavorecidos”, mas sem apontar qualquer evidência.

As alegações da extrema direita sul-africana, ecoadas pelo bilionário Elon Musk – que teve cargo na administração Trump, até brigar com o presidente – não tem qualquer comprovação, não sendo denunciada por nenhum organismo internacional de defesa dos direitos humanos.

De acordo com a última auditoria de terras, realizada em 2017, os proprietários brancos ainda têm três quartos das terras agrícolas da África do Sul. Isso contrasta com 4% de propriedade de negros, que compõem 80% da população, brancos foram 8%.