BRASÍLIA - A Controladoria-Geral da União (CGU) tem previsão de concluir, até o fim deste mês, uma auditoria sobre o pagamento do benefício para pescadores, chamado seguro-defeso, em 23 cidades dos estados do Acre, Amazonas, Amapá, Bahia, Maranhão, Pará e Piauí. De acordo com o governo, entre os sete estados escolhidos, estão os cinco com o maior número de pescadores beneficiários, ou seja, 80% do que é concedido no Brasil.
O seguro-defeso é o benefício pago a pescadores no valor de um salário-mínimo, garantido por meio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), para pessoas que dependem exclusivamente da pesca de pequeno porte. O recurso é destinado à garantia da renda nos períodos em que não é permitido pescar, em razão do crescimento e reprodução das espécies.
De acordo com dados do governo federal, o total de pescadores registrados no país passou de 1 milhão em 2022 para 1,7 milhão em maio de 2025 — sendo 500 mil novos cadastros desde meados de 2024.
No ano passado, o número de beneficiários do seguro-defeso chegou a 1,1 milhão, o que representa um crescimento de 34% em relação a 2022. O governo federal gastou R$ 5,9 bilhões com o benefício em 2024.
De acordo com a CGU, o objetivo central da auditoria é identificar eventuais inconsistências na concessão do benefício, uma vez que as últimas checagens foram realizadas em 2021. Atualmente, o Tribunal de Contas da União (TCU) também realiza auditoria para estimar o volume de pagamentos irregulares com o seguro-defeso.
Naquele ano, auditores do órgão alertaram para fragilidades nas rotinas adotadas para atualização do Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) e aos controles referentes ao recebimento dos Relatórios Anuais de Atividades Pesqueiras, que devem ser apresentados pelos pescadores periodicamente.
"A legislação que disciplina o pagamento do Seguro Defeso estabelece requisitos de caráter essencialmente declaratórios, o que fragiliza os procedimentos de controle e fiscalização, que poderiam, inclusive, ser realizados de forma conjunta pelos diversos órgãos que possuem relação com as atividades que se referem à pesca, à embarcação e ao Seguro Defeso", esclarece trecho do relatório ao qual O TEMPO Brasília teve acesso.
A constatação de fraudes tem sido recorrente por parte da CGU. Uma auditoria de 2017 revelou que 66% dos pagamentos entre 2013 e 2014 apresentavam fraudes, o que causou prejuízo estimado de R$ 5,9 bilhões.
Governo anuncia novas regras após constatação de fraudes
Em audiência no Senado na terça-feira (12/8), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que auditorias da CGU acenderam “alerta amarelo” sobre fraudes no seguro-defeso. Em decorrência das denúncias, o Executivo federal decidiu elaborar novas normas para o pagamento do benefício. As regras recém-definidas constam na Medida Provisória (MP) 1.303/2025.
A MP foi publicada em junho com iniciativas de compensação à decisão do Congresso de derrubar o decreto do governo que alterava as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Além de determinações de aumento dos tributos sobre as chamadas “bets”, a MP também trouxe em seu texto novas regras para concessão do seguro-defeso.
"Essa preocupação [com o programa] surgiu das auditorias recentes feitas pela Controladoria-Geral União que acenderam um sinal amarelo sobre alguns aspectos do programa que estavam, segundo a CGU, fora de controle", explicou Haddad, durante audiência na Comissão Mista que analisa a MP.
O chefe da Fazenda foi questionado por parlamentares sobre mudanças nas normas que poderiam dificultar o acesso de pescadores que moram em áreas mais isoladas, como a necessidade de homologação pela prefeitura e a exigência da nova Carteira de Identidade Nacional (CIN).
Na audiência, o deputado federal Padre João (PT-MG) alertou para a “criminalização” dos pescadores. “Não podemos, pelo erro de um ou de outro, criminalizar a todos”, destacou.
“O recadastramento não será prejuízo, desde que seja em um prazo que não comprometa o usufruir do direto. O recadastramento, com a tecnologia que temos hoje, com cruzamento de informações, isso ressalva”, disse Padre João. “A família não vai ficar de braços cruzados, sem ter o que comer. Vai infringir a lei”, acrescentou.
“Pescadores-fantasma”: denúncia revelou pagamento irregular do seguro-defeso
Um levantamento, divulgado em junho, constatou a existência de “pescadores-fantasma” ao cruzar dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com os registros do Ministério da Pesca e Aquicultura. Em 34 municípios, os supostos pescadores superam 30% da população adulta. A denúncia foi feita pelo portal UOL.
A reportagem descobriu que intermediários entre o governo federal e os supostos pescadores estão se beneficiando do pagamento do seguro-defeso. Colônias e federações que mantêm acordos de cooperação com o INSS solicitam e recebem o valor em nome dos pescadores. Em alguns casos, essas entidades chegam a reter até 50% do seguro pago irregularmente.
A principal entidade representativa do setor, de acordo com o portal UOL, é a Confederação Brasileira dos Trabalhadores de Pesca e Aquicultura (CBPA), alvo da Polícia Federal (PF) por suspeita de fraudes em outro escândalo: o de descontos indevidos em aposentadorias. Após a operação, o convênio da entidade com o INSS foi suspenso.
Em relação ao seguro-defeso, a CBPA se defendeu e informou, em nota, que “não tem poder para cadastrar pescadores no seguro-defeso. Quem realiza esse processo são as entidades de base — colônias, associações e sindicatos de pescadores — por meio de Acordo de Cooperação Técnica com o INSS, conforme previsto na legislação”.
Segundo o levantamento, um terço dos inscritos no Registro Geral de Pesca (RGP) está hoje no Maranhão — aproximadamente 590 mil pessoas. O estado é seguido pelo Pará, com 347,5 mil registros. Ambas as federações estaduais são ligadas à CBPA. Dados apontam ainda que 1.309 entidades estão conveniadas ao INSS para inscrever pescadores no sistema.
MPF denuncia esquema de fraude no Pará
Em 2024, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou José Fernandes Barra, presidente da Federação dos Trabalhadores da Aquicultura e Pesca do Pará (Fetape-PA) e de uma colônia na cidade de Cametá, por envolvimento em um esquema de fraude no pagamento do seguro-defeso. A Fetape-PA é filiada à CBPA.
A denúncia fez parte de uma operação que apura irregularidades em diversas entidades representativas de pescadores no estado. No conjunto de argumentos, a Procuradoria relata que os dirigentes de colônias, além de inscrever falsos pescadores, chegava a cobrar uma “taxa” para o recebimento do benefício até mesmo de quem tinha direito ao seguro-defeso.
De acordo com o MPF, José Fernandes Barra, enquanto dirigente da colônia, teria agido de maneira fraudulenta ao solicitar benefícios junto ao INSS. As investigações apontam que documentos e registros de supostos pescadores foram manipulados, resultando na liberação indevida de recursos públicos.
A denúncia do MPF destaca que as fraudes ocorreram principalmente entre 2020 e 2021, por meio do uso indevido de senhas de servidores do INSS e da inserção de dados falsos no sistema de concessão de benefícios.
Segundo a Polícia Federal, o desvio mensal do seguro-defeso no estado chegava a R$ 130 milhões por mês. As investigações apontam que os próprios dirigentes das associações ficavam com parte dos valores pagos irregularmente aos beneficiários.
Em nota, a entidade esclareceu que Barra sequer foi citado no processo para apresentar defesa na denúncia do MPF e negou irregularidades. “Desde a sua fundação, esta entidade pauta integralmente sua atuação na legalidade, na orientação responsável da categoria e no rigoroso zelo pela administração de recursos públicos”, diz trecho da nota.
“A Colônia Z-16 não compactua, nem compactuará, com práticas irregulares de qualquer natureza. Ao contrário, sempre que toma conhecimento de indícios de fraudes, a própria entidade adota as medidas cabíveis e promove a devida comunicação às autoridades competentes, inclusive com encaminhamento de denúncias formais perante a Justiça Federal”.
PF já realizou diversas operações
As fraudes no seguro-defeso também estão, há anos, na mira da Polícia Federal (PF), com operações anuais em diferentes estados. Uma das maiores foi a Operação Enredados, de 2015, que reduziu em 45% o total de beneficiários no ano seguinte.
Na época, Abraão Lincoln, atual presidente da CBPA, foi preso preventivamente e se tornou réu sob a acusação de corrupção, lavagem de dinheiro e caixa dois. Agora, ele também é investigado por irregularidades em descontos indevidos em aposentadorias.
Em 2022, a Operação Tarrafa, realizada pela Polícia Federal, revelou fraudes milionárias no seguro-defeso, com desvio de R$ 1,5 bilhão. A operação ocorreu em 12 estados. De acordo com os investigadores, os fraudadores inseriam informações falsas no Registro Geral de Pescadores e solicitavam o benefício indevidamente.
Neste ano, apenas uma operação foi realizada, em Minas Gerais. As investigações apontam que supostos pescadores vinculados à Colônia de Pescadores Z-27, em Cristais/MG, teriam recebido indevidamente o benefício entre 2014 e 2025, por meio do uso de documentos falsificados. O prejuízo aos cofres públicos ultrapassou R$ 1 milhão.
Decreto busca aumentar controle
Além das alterações previstas na MP 1303, o governo publicou um decreto em 25 de junho com normas para reforço na fiscalização do seguro-defeso, entre elas, a exigência da biometria para o cadastro. A iniciativa inclui a exigência de comprovação do exercício ininterrupto da atividade pesqueira e a atualização cadastral no RGP.
Além disso, o Ministério da Pesca e Aquicultura e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima passaram a atuar de forma conjunta no monitoramento da atividade e na definição de critérios técnicos para a adoção e revisão dos períodos de defeso.
Segundo o Ministério da Pesca, a nova legislação moderniza e fortalece as regras de concessão do seguro-defeso. “A medida está alinhada aos esforços constantes do governo federal para garantir que o benefício chegue, de forma justa, a quem realmente depende da pesca artesanal para viver. As mudanças também ampliam a transparência do seguro-defeso e coíbem a atuação de fraudadores”, informou a pasta.
As principais novidades do decreto incluem:
- Homologação feita por autoridade municipal ou distrital: o processo será feito por autoridades locais e permitirá uma checagem mais criteriosa das informações prestadas, garantindo que o benefício seja concedido a quem realmente vive profissionalmente da pesca artesanal.
- Pagamento dos benefícios: a concessão do benefício estará limitada à dotação orçamentária disponível em cada exercício fiscal, garantindo maior previsibilidade na gestão dos recursos públicos.
- Combate a fraudes: o acesso ao sistema do INSS será feito por autenticação biométrica, e o cruzamento de dados com outras bases do governo ajudará a identificar inconsistências.
- Força-Tarefa - Carteira de Identidade Nacional (CIN): o governo federal, em articulação com os órgãos competentes, promoverá uma força-tarefa para viabilizar a emissão da CIN aos pescadores artesanais com RGP ativo. Outra medida que o decreto estabelece, essencial para garantir o acesso ao seguro-defeso de forma mais segura e eficiente.
Saiba mais sobre o benefício
O seguro-defeso do pescador profissional artesanal é uma modalidade de seguro-desemprego, no valor de um salário-mínimo mensal, destinado ao pescador que exerce a atividade da pesca com fins comerciais, de forma artesanal, que não possua vínculo de emprego ou outra relação de trabalho, inclusive outra fonte de renda diversa da decorrente da atividade pesqueira.
Compete ao Ibama estabelecer o período de defeso de atividade pesqueira em relação à espécie marinha, fluvial ou lacustre. O benefício deve ser solicitado dentro do prazo entre 30 dias antes da data de início do defeso até o último dia do período.
Procurados, Abraão Lincoln e o Ministério da Pesca não se manifestaram, e o INSS se limitou a dizer que a responsabilidade seria do Ministério da Pesca. Não conseguimos contato com a Colônia de Pescadores Z-27.