Cerca de um mês depois de ter sido aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a vacina anti-Covid para crianças de 5 a 11 anos da Pfizer chegou ao Brasil e já começou a ser aplicada nos pequenos.
O primeiro lote com 1,2 milhão de doses pediátricas aterrissou no aeroporto de Vira Copos, em São Paulo, na madrugada de sexta-feira (14). Agora, estão em fase de distribuição para estados, municípios e o Distrito Federal.
Davi Seremramiwe Xavante, um menino de 8 anos de idade do povo indígena Xavante, foi a primeira criança brasileira imunizada com a dose um da vacina, na tarde de sexta-feira, em São Paulo.
No entanto, o avanço da imunização infantil tem sido ameaçado por ações e omissões do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). É o que alertam os especialistas consultados pela reportagem de O TEMPO.
Pelo menos desde dezembro do ano passado, quando a Anvisa aprovou a vacina da Pfizer e recomendou ao Ministério da Saúde a inclusão das crianças no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19, o governo tem criado empecilhos para a imunização das crianças.
A começar pelo chefe do Executivo, que tem se empenhado na anti-campanha de imunização. Em discursos oficiais, entrevistas e lives semanais, Bolsonaro reiteradas vezes levanta suspeitas sobre a eficácia da vacina, ataca quem a defende e chegou até mesmo a ofender técnicos da Anvisa, como na entrevista que deu para a rádio pernambucana Nova FM.
"A Anvisa lamentavelmente aprovou a vacina para crianças entre 5 e 11 anos de idade. A minha opinião, quero dar para você aqui, a minha filha de 11 anos não será vacinada", afirmou. "O que está por trás disso? Qual é o interesse da Anvisa por trás disso aí? Qual o interesse daquelas pessoas taradas por vacina? É pela sua vida? É pela sua saúde? Se fosse, estariam preocupados com outras doenças no Brasil, que não estão."
Em paralelo aos ataques e conflito aberto entre o presidente da República e o presidente da Anvisa, o Ministério da Saúde criou uma consulta pública, cujo resultado teve como a maioria das pessoas sendo contra a exigência de prescrição médica para autorizar a vacinação das crianças.
A maioria também foi contra a obrigatoriedade dessa vacina, mas participantes da consulta relataram que não havia a opção de marcar “a favor” da obrigatoriedade. Nessa mesma linha, a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria Geral da República (PGR) se manifestaram contra uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que pedia a obrigatoriedade da vacina anti-Covid para crianças.
No mesmo dia da entrevista para a rádio pernambucana, durante a transmissão da live semanal de quinta-feira (6), o presidente disse que “a vacina [para crianças] será de forma não obrigatória”. “Ninguém é obrigado a vacinar o teu filho. Nenhum prefeito ou governador, existem uns aí com essa ideia, poderá impedir o garoto ou a garota de se matricular nas escolas por falta de vacina”, afirmou.
Nesse processo inédito de avaliação da opinião pública para incluir as crianças no cronograma nacional de imunização contra a Covid, o Ministério da Saúde também convocou uma audiência com especialistas – entre os quais havia três indicados pela deputada federal de extrema-direita Bia Kicis (PSL-DF) – que apresentaram argumentos favoráveis e contrários à imunização infantil.
Depois de idas e vindas no alinhamento com o presidente da República, quando estipulou que há um patamar de mortes de crianças que dispensa medidas urgentes, Marcelo Queiroga passou a adotar posicionamento diferente desde o início desta semana, ao defender a eficácia da vacina da Pfizer para o público infantil.
Além disso, Queiroga tem reforçado que haverá doses para todos os pequenos, apesar dos atrasos na distribuição para os estados e a quantidade comprada seja suficiente apenas para a primeira dose. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, há 20,5 milhões de crianças com idade entre 5 e 11 anos.
De acordo com Wilames Freire, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), antes mesmo de as vacinas infantis chegarem aos postos de saúde, a população já está buscando se informar, o que sinaliza uma alta adesão à campanha de imunização das crianças.
“A nossa expectativa é ter, no mais tardar até segunda-feira, todas vacinas distribuídas nos municípios para que possamos dar início a essa campanha. No início teremos dificuldades, porque o quantitativo de doses ainda é muito pequeno”, observa Freire.
Para especialistas da área jurídica, o governo está colocando em xeque direitos fundamentais do cidadão – à saúde e à vida – ao desestimular a busca por proteção nos imunizantes aprovados pela Anvisa.
Cristiana Cordeiro, presidente da Associação Juízes para a Democracia, se diz impressionada com as falas de autoridades contra a obrigatoriedade da vacina. Para ela, “são discursos que confundem e incentivam uma política de morte”.
A vacinação obrigatória de crianças é prevista em lei no Brasil desde 1990, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi sancionado. Cordeiro explica que “as vacinas são um direito para as crianças e um dever para pais e responsáveis”.
“Descumprir o calendário de vacinas está sujeito a penalidades que vão desde a aplicação de medidas administrativas (art. 249 do ECA) até a perda ou suspensão do poder familiar”, afirma a juíza de Direito.
A lei prevê que depois que uma vacina é recomendada por autoridades sanitárias, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ela passa a ser obrigatória.
A preocupação do advogado Ariel de Castro Alves, que integra o Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, é que as falas contra a vacinação infantil sirvam de precedentes para os pais e responsáveis não vacinarem seus filhos contra outras doenças, como sarampo, meningite, febre amarela, entre outras.
Segundo o advogado, gestores públicos, como o ministro da Saúde e o presidente da República, podem responder por improbidade administrativa e prevaricação.
“O dever dos agentes públicos é de cumprir as leis vigentes. Ao não estabelecerem a obrigatoriedade da vacinação, conforme prevista no ECA, o ministro da Saúde e o presidente podem responder por crime de prevaricação e também por protelar o início da vacinação infantil”, nota Alves.
Quanto à exigência do chamado passaporte da vacina, especialmente em escolas, a medida já é praxe. De acordo com o advogado, “existem normas das secretarias estaduais e municipais de educação para o controle periódico e verificação das carteiras de vacinação dos alunos”.
Com isso, defende que as escolas devem pedir aos pais e responsáveis o comprovante de vacinação contra a Covid-19. “Se as crianças não estiverem vacinadas, os dirigentes das escolas precisam alertar os familiares sobre a necessidade e obrigatoriedade de vacinação. Se os pais, mães ou responsáveis não apresentarem a comprovação de vacinação, os conselhos tutelares devem ser comunicados. Isso ocorre com relação às demais vacinas infantis”, diz Alves.
Seguindo essa mesma avaliação, Washington Fonseca, advogado especialista em Direito Médico e sócio do Fonseca Moreti Advogados, também defende que lugares públicos, como escolas e espaços de convívio coletivo, exijam o comprovante de vacinação contra a Covid-19.
Para Fonseca, embora não exista uma lei que obrigue as pessoas a se imunizar, existem os direitos difusos e coletivos. “Estamos tratando de saúde coletiva. Então mesmo que o direito individual de não se vacinar prevaleça, o coletivo não pode ser prejudicado”, afirma o advogado.
“Não há a obrigação para adultos e crianças serem vacinados, mas o coletivo não deve ser obrigado a conviver com pessoas que escolheram não se vacinar, não importa a idade. Estou fazendo a minha parte e essa pessoa não-vacinada pode complicar a comunidade, sobrecarregando o sistema de saúde, seja em âmbito particular ou público”, explica Fonseca.
Sem detalhar como e quando será transmitida nos meios de comunicação e redes sociais a campanha para orientar os pais e responsáveis, o Ministério da Saúde respondeu à reportagem que “a campanha está em desenvolvimento e deve iniciar a veiculação na próxima semana”.
Uma das questões colocadas ao ministério pela reportagem é se as novas gerações vão encontrar o Zé Gotinha e sua família (criada em maio do ano passado, já durante a gestão de Queiroga) nos postos de saúde, o que não foi respondido pela pasta.
O personagem foi criado numa época em que o governo federal não promovia consultas e audiências públicas para reavaliar uma decisão tomada pela Anvisa. Lançando em 1987, o Zé Gotinha protagonizou a campanha contra a poliomielite em jornais, rádios e TVs do país.
Atualmente, para incentivar os adultos a se imunizar e também às crianças, estados e municípios vão tomar a iniciativa de promover a campanha nacional de imunização contra a Covid-19.
“O Ministério da Saúde, durante esse processo de vacinação contra a Covid-19, nunca fez uma mídia forte, mobilizando a população para aderir. Acredito que dificilmente isso vai acontecer. Os estados e municípios já estão fazendo as suas campanhas”, informou o presidente do Conasems.
Freire destaca também que, mesmo sem o empenho do governo federal, as pessoas buscam as vacinas. “A gente vê uma adesão muito forte da população, independente de campanha publicitária. Então acredito que será uma campanha rápida e esperamos ter as doses suficientes para atingir nosso objetivo de imunizar 100% das crianças.”
“A campanha publicitária vai precisar de um cuidado especial, até pela necessidade de contrapor aquelas pessoas que agem contra a vacinação de crianças. O negacionismo não pode prevalecer diante da preservação da vida e da necessidade que temos de imunizar as pessoas”, reforça Freire.
O TEMPO agora está em Brasília. Acesse a capa especial da capital federal para acompanhar o noticiário dos Três Poderes