BRASÍLIA - Áudios atribuídos ao general Mario Fernandes, número 2 da Secretaria-Geral da Presidência no governo de Jair Bolsonaro (PL), mostram como ele tinha a intenção de envolver as Forças Armadas no suposto plano de golpe de Estado de 2022, apontado em inquérito da Polícia Federal (PF) que, concluído na semana passada, culminou no indiciamento de 37 pessoas, incluindo o ex-presidente.
Parte dos diálogos foi revelado pelo Fantástico na noite deste domingo (24). A produção do programa da TV Globo teve acesso a 55 áudios que circulavam em grupo de militares de alta patente e que foram anexados pela PF no inquérito finalizado na última quinta-feira (21). A equipe de O TEMPO em Brasília teve acesso ao relatório da PF, que traz a transcrição dos áudios.
Em um dos áudios, Fernandes disse que conversou com Bolsonaro sobre a diplomação da chapa Lula e Alckmin, marcada para 12 de dezembro de 2022 no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição? Qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro. Tudo. Mas aí na hora: pô, presidente. A gente já perdeu tantas oportunidades”, mostra o áudio.
Em 12 de dezembro de 2022, logo após a cerimônia de diplomação, apoiadores de Bolsonaro tentaram invadir a sede da PF, na área central de Brasília, e incendiaram carros e ônibus, além de quebrar vidraças de prédios particulares. Investigação mostrou que o grupo havia saído do acampamento em frente ao Quartel General do Exército, que pedia intervenção militar contra a posse de Lula.
O grupo tentou invadir a PF para libertar o Cacique Tserere Xavante, um indígena bolsonarista preso momentos antes, perto do Supremo Tribunal Federal (STF), com a intenção de atacar o prédio. Sem conseguir entrar no STF, apoiadores de Bolsonaro passaram a quebrar o que viam pela frente. Três deles foram presos após planejar o atentado a bomba no aeroporto de Brasília em 24 de dezembro de 2022.
“Tu viu que já começaram a radicalizar, né? A prisão do cacique ali já levou. Ó, aqui no início da Asa Norte, da W3 Norte, na sede da Polícia Federal, o pau tá comendo. Os distúrbios urbanos já iniciaram. Agora vai rolar sangue”, comemorou o general Mário Fernandes em áudio enviado ao coronel do Exército Reginaldo Vieira de Abreu, conhecido como Velame.
O general Mário Fernandes também demonstrou empolgação com os atos de vandalismo em conversa com o general Luiz Eduardo Ramos, ex-ministro de Bolsonaro. “Vai começar a rolar sangue. E nós sabemos que isso aí já era um prenúncio, já era anunciado. Certo? Vai acontecer, porra, não tem jeito. Quanto mais se retardar uma ação efetiva, mais vão acontecer eventos como esse”, disse Fernandes.
A PF afirma que os acampamentos em frente a quartéis do Exército após a derrota de Bolsonaro nas urnas faziam parte de um movimento orquestrado pelos militares e que o general Fernandes se comunicava frequentemente com esses grupos, mas que “os principais diálogos em torno de temas antidemocráticos e/ou relacionados aos ideários golpistas” eram travados com militares.
“Talvez seja isso que o alto comando, que a defesa quer. O clamor popular, como foi em 64. Nem que seja pra inflamar a massa. Para que ela se mantenha nas ruas”, afirma o general em áudios que circulavam nos grupos de apoiadores da intervenção militar. Ele se refere ao golpe de 1964, que derrubou um presidente civil eleito democraticamente e deu início a uma ditadura militar, que durou até 1985.
‘Quatro linhas da Constituição é o c…’
No inquérito, policiais federais apontam o general Fernandes como um dos mentores do plano denominado Punhal Verde e Amarelo e um dos mais radicais do grupo que tratava do tema. “O senhor me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o c... Quatro linhas da Constituição é o c... Nós estamos em guerra, eles estão vencendo, está quase acabando e eles não deram um tiro por incompetência nossa”, afirmou um oficial do Exército. “Meu pensamento é o mesmo, meu amigo. Eu já dei uma bicuda nessas quatro linhas há muito tempo”, respondeu o general Mário Fernandes.
Em 4 de novembro de 2022, o coronel Velame enviou o seguinte áudio para o general Mário Fernandes. “Esse pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião, tem que ser petit comité, pô. Tem que ser a ‘rataria’, ele e a ‘rataria’. Com o comandante do exército, mas petit comité, essa galera não pode estar aí, p..., aí tem que debater o que que vai ser feito.”
Publicamente, Bolsonaro dizia querer sempre agir “dentro das quatro linhas da Constituição”. Aliados dele repetiam isso ao comentar ações para impedir a posse de Lula, alegando que havia irregularidades no sistema eleitoral brasileiro, sem nunca terem mostrado provas. O general Fernandes pregava isso em grupos de aplicativos. “Tá na cara que houve fraude. Tá na cara. Não dá mais pra gente aguardar essa p...”, diz em um dos áudios que a PF apontou ser dele.
‘E eu tô pronto a morrer por isso’, disse um oficial
O plano elaborado por Fernandes e outros militares de alta patente incluía os assassinatos do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do STF Alexandre de Moraes, ainda segundo a investigação da PF. E ele previa inclusive a morte de militares que executariam parte do plano, com uso de pistolas, metralhadoras, granadas e explosivos.
“Eu tô pedindo a Deus pra que o presidente [Bolsonaro] tome uma ação enérgica e vamos, sim, pro vale tudo. E eu tô pronto a morrer por isso”, afirma o general Mario Fernandes a um interlocutor identificado como Hélio Coelho, na tarde de 4 de novembro de 2022, segundo a PF. “Qualquer solução, caveira, tu sabe que ela não vai acontecer sem quebrar ovos, sem quebrar cristais”, diz o áudio atribuído a Fernandes.
General reformado, Mario Fernandes foi assessor do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ) e ministro interino da Secretaria-Geral da Presidência da República no governo de Bolsonaro. Após deixar o governo, assumiu, entre 2023 e o início de 2024, um cargo na liderança do PL na Câmara dos Deputados, lotado como assessor de Pazuello, com um salário de R$ 15,6 mil.
Fernandes foi desligado da função em 4 de março deste ano, após o ministro Alexandre de Moraes determinar seu afastamento das funções públicas. Quando foi chamado a depor pela PF em 22 de fevereiro de 2024, Mário Fernandes, contudo, optou por ficar em silêncio, alegando não ter tido acesso ao inteiro teor dos conteúdos da investigação e, em especial, à delação do tenente-coronel Mauro Cid.
General foi preso na operação Contragolpe
Mario Fernandes é um dos quatro oficiais do Exército presos na última terça-feira (19) na Operação Contragolpe, da PF. Os militares são integrantes das Forças Especiais do Exército, também conhecidos como “kids pretos”, especializados em ações de guerrilha, infiltração e outras táticas militares usadas em operações clandestinas. Eles e um agente da PF acusado de alimentar o grupo sobre informações relativas à segurança de Lula, estão entre os 37 indiciados na quinta-feira.
As investigações apontaram que os indiciados se estruturaram por meio de divisão de tarefas, o que permitiu a individualização das condutas e a constatação da existência dos seguintes grupos nomeados da seguinte forma pela PF:
- Núcleo de desinformação e ataques ao Sistema Eleitoral;
- Núcleo responsável por incitar militares à aderirem ao golpe de Estado;
- Núcleo jurídico;
- Núcleo operacional de apoio às ações golpistas;
- Núcleo de inteligência paralela;
- Núcleo operacional para cumprimento de medidas coercitivas.
A PF indiciou todos os integrantes do grupo que foi batizado, ao longo do inquérito, como Núcleo de oficiais de alta patente, integrado por militares que “utilizando-se da alta patente que detinham, agiram para influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do Golpe de Estado”.
A defesa do general Mário Fernandes não havia se manifestado até a mais recente atualização deste conteúdo. Bolsonaro negou qualquer participação no suposto plano de golpe de Estado e acusou Alexandre de Moraes de perseguição e descumprimento da legislação brasileira.
Penas somadas podem chegar a 30 anos de prisão
Os 37 investigados pela PF no inquérito finalizado na quinta-feira foram indiciados no pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. As penas acumuladas de tais crimes podem chegar a 30 anos de prisão. Confira abaixo as penas para cada crime citado pela PF:
- Golpe de Estado: 4 a 12 anos de prisão;
- Abolição violenta do Estado democrático de Direito: 4 a 8 anos de prisão;
- Integrar organização criminosa: 3 a 8 anos de prisão.
Com a entrega do relatório, a PF encerra as investigações referentes às tentativas de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Cópia do inquérito, que tem 884 páginas, foi enviado ao STF, responsável pela ação. A Procuradoria Geral da República (PGR) deve receber nesta segunda-feira (25) um cópia do documento para se manifestar contra ou a favor do resultado da investigação. Ela fará a denúncia, ou mandará arquivar ou pedir mais investigações.
Caso a PGR se manifeste favoravelmente sobre o prosseguimento da ação, denunciado ao STF os indiciados pela PF, caberá aos ministros do Supremo julgar se aceitam ou rejeitam a posição da procuradoria.
Se a maioria dos ministros entenderem que há elementos suficientes para acatar a denúncia da PGR, os indiciados passarão à condição de réus e começarão a responder ao processo penal. Só quando houver decisão definitiva ou não existir mais possibilidade de recurso, eles são considerados culpados.
Há expectativa de o caso ser julgado pelo STF em junho ou julho de 2025.
A PF ressaltou, em comunicado oficial, que “as provas foram obtidas por meio de diversas diligências policiais realizadas ao longo de quase dois anos, com base em quebra de sigilos telemático, telefônico, bancário, fiscal, colaboração premiada, buscas e apreensões, entre outras medidas devidamente autorizadas pelo poder Judiciário”.
A investigação começou após os atos de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes, em Brasília, foram invadidas e depredadas por apoiadores de Bolsonaro que pediam intervenção militar para manter o ex-presidente no poder, com a prisão de Lula e ministros do STF.