BRASÍLIA - Discreta, sóbria e avessa a embates políticos, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Cármen Lúcia, se articula para enfrentar a disseminação de fake news e do mau uso da inteligência artificial nas eleições municipais de 2024 sem, no entanto, lidar com os radicalismos que racharam o Brasil em 2022.

Técnica e menos combativa que seu antecessor Alexandre de Moraes, a mineira que nasceu em Montes Claros e se criou em Espinosa, no Norte de Minas, deverá ter pela frente um processo eleitoral tal qual o seu perfil: contido e tradicionalmente alheio à polarização que domina os pleitos presidenciais, sobretudo o último, em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se enfrentaram.

A expectativa é de que a ministra, que circula entre o séquito cultural da MPB, já apareceu informalmente cantando um samba com Alcione e tem entre seus amigos próximos o ex-presidente do Atlético e ex-prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, não enfrente problemas em outubro

“Cármen é mais discreta, tem valores culturais, referências a Minas Gerais e é mais contida. E diante disso tudo, tem a coincidência de lidar, mais uma vez, com eleições que acredito que serão igualmente contidas e sem os efeitos do que se chama de polarização”, aposta o advogado Max Telesca, com trânsito pelos tribunais superiores em Brasília. 

A ministra, que coleciona ineditismos na carreira ao ser a única mulher na Corte Superior majoritariamente masculina e branca, e ser a única a presidir duas vezes a Justiça Eleitoral pelo TSE, ainda precisa se esforçar para ter o mesmo espaço que seus pares, ainda que seu vasto currículo na magistratura não precisasse provar o contrário. 

Misoginia e ataques depreciativos

As especulações sobre vida pessoal da ministra alimentam uma onda de comentários pejorativos e ataques misóginos, vindos, inclusive, de mulheres. Em março deste ano, veio à tona uma troca de mensagens em um grupo do Telegram em que as procuradoras Livia Tinoco e Janice Ascari, do Ministério Público Federal (MPF), fazem comentários depreciativos sobre a aparência física da ministra.

Livia diz que gosta da ministra, a quem considera "excelente magistrada", mas completa com ofensas ao escrever que “em matéria de cuidados corporais ela é péssima. Parece até anti-higiênica". A procuradora diz que Cármen Lúcia tem "uns dentes horríveis, amarelos e tortos", e que já tinha passado "da hora" de ela "fazer um preenchimento e um botox".

Janice acompanha com um "Hahahahahahaha". Outro procurador no grupo, Wellington Saraiva questiona se a ministra “é casada, já casou", e se "tem filhos", ao completar que isso não teria "relevância profissional, mas tem". Cármen Lúcia não é casada e não tem filhos e, de acordo com pessoas próximas, teria optado em se dedicar integralmente à carreira profissional. 

Maioridade de STF

Na última sexta-feira, Cármen Lúcia completou 18 anos como ministra do Supremo Tribunal Federal (STF). Única representante feminina na mais alta Corte do Judiciário, a juíza acumula ineditismos: foi a segunda mulher a ser indicada para o cargo, em 2006, pelo presidente Lula. 

No TSE, se tornou a primeira mulher na história do Brasil a presidir a Corte Eleitoral em 2012, feito que agora se repete por também ser a única a reassumir o cargo em 2024. Presidiu também o STF no biênio 2016/2018, período em que, por cinco vezes, assumiu a Presidência da República em substituição aos demais chefes de Poderes na linha sucessória, que se encontravam fora do país.

Este ano, Cármen Lúcia foi a responsável pela relatoria das normativas que ditam as regras para as eleições municipais de 2024, aprovada em março pela Corte Eleitoral.

No STF, relatou temas de grande impacto social, econômico e político. A decisão que afastou a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias e o julgamento que proibiu a importação de pneus usados no Brasil estão entre os temas de maior destaque da sua relatoria e motivaram a convocação de audiências públicas para aprofundar a sua decisão. 

Outros temas em que a ministra foi relatora foram o teto constitucional do funcionalismo público, a vedação ao voto impresso a partir das eleições de 2014, as regras de distribuição dos royalties do petróleo e a validade da extinção de cobranças judiciais de dívidas de pequeno valor com o poder público pela Justiça estadual.

Discriminação de gênero

Cármen Lúcia também é relatora da ação julgada em maio de 2024 em que o STF declarou inconstitucional o questionamento sobre a vida sexual ou o modo de vida da vítima na apuração e no julgamento de crimes de violência contra mulheres. De acordo com ela, perguntas desse tipo perpetuam a discriminação e a violência de gênero e vitimiza duplamente a mulher, especialmente as que sofreram agressões sexuais. 

“Essas práticas, que não têm base legal nem constitucional, foram construídas em um discurso que distingue mulheres entre as que ‘merecem e não merecem’ ser estupradas”, afirmou em seu voto na época.

Biografia 

Cármen Lúcia Antunes Rocha cursou Direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG), onde foi professora titular de Direito Constitucional anos depois. Em 2006, deixou o cargo de procuradora do Estado de Minas Gerais para ser ministra do STF por indicação do presidente Lula, ocupando a vaga aberta com a saída voluntária do ministro Nelson Jobim.