BRASÍLIA – Em depoimento na presença de dois advogados, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), disse que o general da reserva Walter Braga Netto entregou dinheiro em caixa de vinho aos chamados “kids pretos”, para financiar o plano Punhal Verde e Amarelo, que envolvia os assassinatos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o vice-presidente Geraldo Alckmin.

Mauro Cid narrou o episódio em depoimento a Moraes e ao procurador-geral, Paulo Gonet. O tenente-coronel, que foi um dos mais próximos assessores de Bolsonaro na Presidência da República, afirmou que entregou ao major Rafael Martins de Oliveira os “recursos” para financiar a logística do plano Punhal Verde e Amarelo. Cid deixou claro que os valores foram entregues a ele por Braga Netto, que foi ministro da Defesa no governo Bolsonaro e vice na chapa que perdeu a eleição para Lula em 2022.

No depoimento, Cid relatou ter recebido um telefonema do major Oliveira, reclamando que “estava sem recursos” para levar à frente seu plano. O tenente-coronel disse que prometeu “tentar conseguir” algum “apoio” e, em seguida, procurou Braga Netto. Ainda segundo Cid, o general deu a ideia de pedir dinheiro ao PL. “Eu disse: ‘General, o pessoal precisa de dinheiro’. Aí o general pediu para fazerem uma solicitação do que precisavam dizendo que ia ver se o partido bancava algumas coisas”, narrou Cid.

Cid contou que foi ao encontro de um “coronel reponsável pelo partido”. “Fui conversar com o coronel lá que era responsável pelo partido. Eu não me recordo o nome dele. Inclusive, ele viu o documento [do plano Punhal Verde e Amarelo]. Eu imprimi o documento e mostrei para ele o documento. Esse documento, o inicial, que tinha só as relações. Aí ele falou que ele não poderia... o partido não podia trazer manifestantes ou apoiar com esse tipo de material”, disse Cid. 

Com a negativa, o ex-ajudante de ordens disse ter procurado novamente Braga Netto. “Aí eu voltei no general Braga Netto e ele falou: ‘Vou dar um jeito, vou conseguir por outros caminhos”, contou Cid. Duas semanas depois, de acordo com o tenente-coronel, Braga Netto entregou a ele uma sacola de vinho com o dinheiro repassado a Oliveira. “Ele [Braga Netto] me entregou. Era tipo uma coisinha de vinho assim [faz gestos com a mão], de presente de vinho, com dinheiro. Eu não contei, não sei quanto, estava grampeado. E aí o de Oliveira veio buscar o dinheiro”, narrou.

Durante a investigação, a Polícia Federal (PF) recuperou mensagens de texto e áudio dos “kids pretos”, integrantes das Forças Especiais do Exército que participaram do planejamento do Punhal Verde e Amarelo, além de cópia do plano. Militares chegaram a deflagrar o plano para matar Moraes, mas ele foi abortado pouco antes do sequestro do ministro, segundo os investigadores. Conversas interceptadas pela PF mostram que os “kids pretos” pediram R$ 100 mil a Braga Netto, mas Cid não deixou claro se todo esse valor estava na sacola de vinho entregue pelo ex-ministro da Defesa.

Moraes tornou vídeos públicos a pedido de Gonet

Os depoimentos da delação premiada de Mauro Cid foram tornados públicos nesta quinta-feira (20) por Alexandre de Moraes. A decisão ocorreu dois dias após Paulo Gonet apresentar denúncia por tentativa de golpe de Estado contra 34 pessoas, incluindo Bolsonaro, Braga Netto, Mauro Cid e Martins de Oliveira. Braga Netto está preso desde dezembro por obstrução à Justiça.

Foi Gonet quem pediu a queda do sigilo dos vídeos e de outros dados sigilosos da investigação realizada pela PF, que inclui outros episódios, como o da chamada Abin paralela e do uso da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para influenciar as eleições de 2022. Mauro Cid falou sobre esses casos em interrogatórios. 

Ao pedir a Moraes que as defesas dos investigados tivessem acesso “aos elementos informativos que instruíram” a denúncia, Gonet se antecipou aos pedidos de compartilhamento que poderiam ser apresentados pelos advogados. Bolsonaro e aliados vinham criticando a falta de acesso a todas informações das investigações.

Moraes determinou que os vídeos dos depoimentos de Cid sejam disponibilizados no sistema de acompanhamento processual do STF, que é público. Na quarta-feira (19), Moraes liberou acesso à transcrição dos depoimentos

Caso será analisado por colegiado do STF

A acusação contra os 34 denunciados por Gonet na terça-feira será analisada pela Primeira Turma do STF. O colegiado é formado pelos ministros Alexandre de Moraes (relator da ação), Cristiano Zanin, Carmen Lúcia, Luiz Fux e Flávio Dino. 

Confira os próximos passos da ação sobre a tentativa de golpe:

  • Após receber a denúncia da PGR, na terça, Alexandre de Moraes deu 15 dias para as defesas dos acusados se manifestarem, prazo que pode ser estendido.
  • Na fase posterior, depois de todas as considerações, o caso será encaminhado para análise da Primeira Turma.
  • A Primeira Turma vai decidir se a denúncia será recebida ou rejeitada. Para ser acolhida, é necessário o voto da maioria entre os cinco ministros.
  • Caso o colegiado acolha a denúncia, os nomes listados pela PGR serão considerados réus e chamados para apresentar defesa.
  • O próximo passo é o interrogatório dos réus e a oitiva das testemunhas. Cada réu pode arrolar 8. Como foram 34 denunciados, serão até 272 testemunhas.
  • O estágio seguinte é abertura de prazo para as alegações finais, quando as defesas podem contestar as provas incluídas pela PGR na denúncia e levantar elementos que apontem a inocência dos réus.
  • Depois das alegações, o STF deve marcar uma data para o julgamento dos acusados. Caberá a Zanin, o presidente da Primeira Turma, decidir colocar o tema em julgamento.  
  • Existe uma possibilidade, no entanto, de que o julgamento seja levado a plenário, por decisão de Moraes ou dos ministros da Primeira Turma. 

Penas podem chegar a 38 anos de prisão

Em sua denúncia ao STF, Paulo Gonet narrou uma série de eventos que resultaram na suposta tentativa de golpe de Estado, tendo como ponto alto os atos de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e vandalizadas por apoiadores de Jair Bolsonaro pedindo intervenção militar contra o governo de Lula, que havia tomado posse uma semana antes.

Na acusação, Gonet ressalta que a abolição do Estado democrático não precisa se consumar para ser crime. Lembra que os cinco crimes atribuídos a Bolsonaro e outros estão previstos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal. A descrição dos dois tipos penais começa pelo verbo “tentar”. Todos os 34 denunciados na terça são acusados de cometer os seguintes crimes:

  • Tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito;
  • Tentativa de golpe de Estado;
  • Organização criminosa;
  • Dano qualificado pela violência e grave ameaça;
  • Deterioração de patrimônio tombado. 

Caso a acusação seja aceita e resulte em condenação, as penas somadas podem chegar a 38 anos de prisão.

Na denúncia de 272 páginas, Gonet falou em “iter criminis”. Este é um termo do direito penal que significa caminho para crime e se refere ao processo de evolução do delito, ou seja, descrevendo as etapas que se sucederam desde o momento em que surgiu a ideia até a sua consumação.

Para sustentar a acusação, o chefe do Ministério Público, além de citar documentos produzidos pelos próprios acusados, como os supostos planos de golpes que incluíram assassinatos de Lula e do ministro Alexandre de Moraes, recorda uma série de episódios, que vão dos constantes ataques às urnas e ao STF, antes das eleições, aos atos violentos após a derrota de Bolsonaro nas urnas.