O presidente da Argentina, Mauricio Macri, virá ao Brasil em 16 de janeiro para uma visita oficial a Jair Bolsonaro. As relações comerciais entre os dois países podem sofrer mudanças com o novo governo?
O que estará em jogo é uma reformulação do Mercosul. Se nos fixarmos ao que sugeriu Paulo Guedes, a ideia do futuro governo brasileiro passa pela modificação radical do Mercosul, para que passe a ser considerado simplesmente uma zona de livre comércio e já não uma união aduaneira. Isso permitiria que o Brasil e cada um dos integrantes negociem acordos de livre comércio com outros países de maneira independente. Não é que a Argentina vai deixar de ser sócia comercial do Brasil, mas vai perder a reserva de mercado, a preferência que hoje tem no mercado brasileiro. As empresas argentinas que hoje exportam ao Brasil deverão começar a competir com empresas de outros países.
A Argentina é um dos cinco principais parceiros comerciais do Brasil. O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a afirmar que o Mercosul e a Argentina não serão prioridades no futuro governo. Qual a consequência disso?
A pergunta que se deve fazer é se esta postura sugerida por Guedes é a postura de todo o governo de Bolsonaro. Tenho a suspeita, e algum indício, de que, para o setor militar do próximo governo, é importante manter o Mercosul no desenho atual.
O senhor considera que há o risco de uma crise entre Brasil e Argentina?
É preciso entender esse momento como uma reformulação muito forte da relação entre os dois países. Não tenho claro até que ponto será um conflito. Sem dúvida, não será uma relação tão próxima quanto em outros momentos no tema da integração.
Como a eleição de Jair Bolsonaro foi recebida na Argentina?
De uma maneira similar que no Brasil, com setores progressistas e liberais muito preocupados pelo que entendem como um retrocesso democrático muito forte, e com setores de direita, especialmente da direita não liberal, que entendem que poderia ser um caminho interessante para a própria Argentina seguir.
Ainda antes da vitória de Bolsonaro, o senhor escreveu um artigo sobre a influência dos militares no futuro governo brasileiro. Como o senhor vê essa situação?
No Brasil, há um regresso do chamado “partido militar” ao poder. Os analistas na América do Sul perderam a habilidade de compreender a dimensão política e as brigas internas das Forças Armadas nos diferentes países pela simples razão de que, desde a redemocratização, as Forças Armadas foram perdendo força política. O Brasil atual nos obriga a observá-las como um fator político, especialmente ao Exército. O artigo que você mencionou falava de uma estratégia deliberada da cúpula do Exército de buscar um candidato próprio para as eleições, um projeto que começou em 2014, e o homem eleito foi Jair Bolsonaro, a quem convenceram da necessidade de abandonar as velhas ideias econômicas nacionalistas e aceitar o liberalismo. Os militares também instruíram Bolsonaro a reduzir alguns excessos retóricos. Esse projeto de poder conseguiu, como garantia, a colocação de um general como vice e a colocação de vários ministros militares. Essa volta do “partido militar” representa uma das principais novidades do processo eleitoral brasileiro.
O senhor já cobriu eleições em diversos países da América do Sul, inclusive todas no Brasil desde 1994. O que a de 2018 teve de peculiar?
A emergência de uma liderança antissistema. Por que 54% dos brasileiros votaram em Bolsonaro? Porque ele deu determinadas respostas em matéria de corrupção, de segurança pública. Ele expressou um cansaço social com governos que deixaram de ter uma visão sobre o desenvolvimento e a melhora dos serviços públicos. Também soube resgatar um Brasil conservador que existia, mas estava disperso politicamente. Se tudo isso depois se transformará em uma política de governo eficaz, é outra questão.
Até que ponto o antipetismo foi um traço determinante para a vitória de Bolsonaro?
O antipetismo foi a força mais intensa para explicar a vitória de Bolsonaro. Dentro desse grupo há pessoas com a visão de que a economia tem que ser mais liberal, outras com miradas religiosas dos assuntos sociais e outras que não se sentiam cômodas com os governos Lula e Dilma. Temos também o fator militar e a existência de um Brasil conservador que estava ignorado, mas existia. Todas essas coisas podem explicar a eleição de Bolsonaro. Ele foi a melhor antítese do petismo.
Como o senhor analisa a atuação da imprensa nas eleições deste ano no Brasil?
Muito confusa. Parece-me perfeito que os meios de comunicação divulguem investigações de corrupção, mas acho que houve uma maior ênfase em tudo que era relacionado ao Partido dos Trabalhadores. Isso foi gerando um ambiente muito adverso para a esquerda. O que muitos setores (da mídia brasileira) que apoiaram o impeachment contra Dilma Rousseff não calcularam foi que a direita tradicional já não tinha potência e que poderia vir uma direita ameaçadora para alguns pilares da democracia brasileira. A Rede Globo já não cria presidentes. Talvez, ela seja mais eficaz para debilitar do que para colocar um novo. Quando falo da Rede Globo, estou falando de um símbolo. Isso vai além da Rede Globo em particular.
As fake news se tornaram um fenômeno muito presente em 2018. As redes sociais foram decisivas para a vitória de Jair Bolsonaro?
As redes sociais foram muito importantes, assim como os próprios meios de comunicação tradicionais, permitindo a Bolsonaro colocar-se em um lugar central durante toda a campanha através de polêmicas que ele gerava, que, evidentemente, não foram negativas para ele do ponto de vista de uma maioria social que votou nele. Os meios de comunicação tradicionais já não geram a mesma confiança de outros momentos. Há canais alternativos para a difusão de notícias verdadeiras ou falsas, e, sobretudo, para proliferação de opiniões pessoais que vão se enfileirando em correntes alternativas às linhas editoriais dos grandes meios de comunicação. Estamos vivendo uma mudança de época em que hoje convivem meios tradicionais, meios emergentes e redes sociais.
Sebastián Piñera, no Chile; Mauricio Macri, na Argentina; Michel Temer e Jair Bolsonaro, no Brasil; Iván Duque, na Colômbia. Pode-se dizer que há uma ascensão recente da direita na América do Sul?
Sim, são todos governantes de direita, mas não são o mesmo tipo de direita. São fenômenos diferentes. Uma coisa é falar de direita e outra é falar de extrema direita. Pode-se definir a extrema direita como um projeto político que busca aplicar ideias de direita, mas com uma implementação conflitiva com os limites do sistema democrático. Outra coisa é a direita mais tradicional. Piñera não expressa o mesmo de Bolsonaro, o começo do governo Macri também não, mas, agora, já há indícios de que setores do macrismo buscam uma repressão policial mais forte para abordar a questão da segurança pública.
É correto dizer que a esquerda está em crise na América Latina?
Sim, mas é preciso saber o que definimos como esquerda. O kirchnerismo não é, tem outra tradição, que é peronista. Muitos o consideram desse jeito. O PT enfrentou uma crise muito forte, o kirchnerismo também, mas os dois casos ainda têm potência eleitoral vinculados à persistência de suas figuras históricas, Lula e Cristina Kirchner. Há uma crise pelas investigações de corrupção, e também de respostas frente aos novos desafios. É uma crise de credibilidade que faz com que mais da metade dos eleitores dos dois países os odeie. Claramente é uma crise.