No livro 1822, percebemos que um personagem importante para o momento foi José Bonifácio Andrada e Silva, o patriarca. No caso da Abolição da Escravatura no Brasil, a principal personagem é, de fato, a princesa Isabel?
Essa é uma questão que ainda não está bem resolvida. Existe hoje uma guerra no calendário cívico nacional envolvendo personagens e duas datas importantes relacionadas à história da escravidão. A primeira data é o Treze de Maio, dia da assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel, em 1888. A segunda, o Vinte de Novembro, da morte do herói dos Palmares, em 1695. Qual delas seria mais importante e digna da reverência dos brasileiros neste início de século 21? A polêmica é menos trivial do que se imagina. Nela estão diferentes visões a respeito da história da escravidão, seus acontecimentos e personagens e também o seu legado para as atuais e futuras gerações. Os defensores do Treze de Maio reverenciam a Princesa Isabel no papel que lhe foi atribuído no século 19 pelo jornalista e abolicionista negro José do Patrocínio: o de “Redentora” da liberdade dos cativos no Brasil. Os aliados de Zumbi e do Vinte de Novembro, ao contrário, acreditam que a Lei Áurea foi apenas um ato de fachada da elite agrária escravocrata brasileira que até então defendera com unhas e dentes o regime escravagista. Por essa visão, a luta dos escravos brasileiros estaria mais bem representada pelo herói de Palmares e data de seu sacrífico nas matas de Alagoas. É uma guerra que ainda está longe da acabar e só vai se resolver pelo estudo da história da escravidão e pela maneira como vamos encarar esses personagens e acontecimentos no futuro.
Vamos completar 130 anos de República neste ano. A Escravidão findou em maio de 1888. Portanto, períodos próximos. Algum presidente demonstrou interesse em combater o racismo que ainda é explícito no Brasil até hoje?
O racismo é um legado da escravidão que o Brasil, infelizmente, nunca teve coragem ou disposição para enfrentar. Essa é uma das consequências mais profundas e duradouras da escravidão africana nas Américas: o nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo. Por essa ideologia, usada como justificativa para o comércio e a exploração do trabalho cativo, o negro seria naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo. Sua vocação natural seria, portanto, o cativeiro, onde viveria sob a tutela dos brancos, podendo, dessa forma, alçar eventualmente um novo e mais avançado estágio civilizatório. Essa ideologia, no meu entender, permanece hoje oculta nas formas preconceituosas de relacionamentos entre brancos e negros no Brasil. Isso faz com que, por exemplo, nas 500 maiores empresas que operam no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência sejam ocupados por negros. Os brancos são também a esmagadora maioria em profissões qualificadas, como engenheiros (90%), pilotos de aeronaves (88%), professor de medicina (89%), veterinários (83%) e advogados (79%). No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades aos negros, explica essas diferenças.
A Escravidão acabou há mais de 100 anos. Mesmo assim, os resquícios, como o racismo perduram até hoje. Por que o Brasil não conseguiu até hoje acertar as contas com o passado?
Ao contrário do que se imagina, a escravidão não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais e nas discussões diárias que aparecem nas redes sociais. O preconceito é uma das marcas das nossas relações sociais no Brasil, embora sempre procuremos disfarçá-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. Um desses mitos dizem que somos uma ‘democracia racial’ e que a escravidão entre nós foi mais branca, patriarcal e tolerante do que eu outros territórios da América. Tudo isso é ilusório e desmentido pelas estatísticas, que mostram um fosso enorme de desigualdade entre negros e brancos no país em todos os itens analisados. Os descendentes de africanos ganham menos, moram em lugares mais insalubres, estão mais expostos aos efeitos da violência e da criminalidade e tem oportunidades em todas as áreas, incluindo emprego, saúde, educação, segurança, saneamento, moradia e acesso aos postos da admiração pública. Esse é um legado da escravidão, mal resolvido no passado e que ainda hoje tentamos negar. Portanto, tudo o que fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e a forma como nos relacionamos com elas.
Quando vemos programas como cotas para negros em universidades, há uma discussão que se acentua com afirmações de que a situação apenas amplia o conflito étnico. Em contrapartida, movimentos pró-cotas afirmam que é uma forma de o governo se retratar (um pouco) com o passado. O que o senhor acha das cotas em universidades?
Eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos (categoria do IBGE que inclui uma ampla gama de mestiços) mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada. Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada. A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes. Claro que ainda há muita reação. Um dos argumentos contrários à política de cotas, presente até em discursos de altas autoridades da república, tenta culpar os escravos pela própria escravidão. Muita gente afirma que, se os africanos participaram e lucraram com a escravidão, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria porque indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso. Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com os seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.
O quão a política brasileira contribuiu para permanência da escravidão no País, já que fomos os últimos a abolir o sistema escravocrata?
O Brasil foi construído com trabalho cativo, primeiro indígena depois africano. Isso deu o alicerce para a colonização portuguesa na América e a ocupação do imenso território. Também moldou a maneira como nos relacionamos uns com os outros ainda hoje. Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestação quase diárias de preconceito racial. Isso, no meu entender, é ainda herança da exploração desumana, cruel e indigna do trabalho de milhões de pessoas forçadas a cruzar o Oceano Atlântico a bordo dos navios negreiros para viver como cativas no Brasil colônia. O legado da escravidão persiste entre nós ainda hoje, na forma de preconceito, exclusão social, ou, pior, de autonegação, que se o tema não existisse ou não merecesse ser estudado. Há o desafio brasileiro de encarar a sua própria história escravagista e dela tirar lições que nos ajudem a construir o futuro.
O que o governo brasileiro pode e deve fazer para reparar o grave erro que foi a escravidão?
O Brasil passa por uma experiência inédita em sua história, que são mais de três décadas de democracia, sem ruptura. É uma jornada difícil, com altos e baixos, com frustrações, sustos e surpresas, mas é também a primeira vez em que todos os brasileiros são chamados a participar da construção do futuro. Democracia não é uma fórmula mágica, capaz de resolver todos os nossos problemas instantaneamente. É antes de tudo um longo e difícil aprendizado. Estamos aprendendo a exercitar a democracia. Também pela primeira vez temos a oportunidade de tratar de assuntos difíceis e delicados, como é o caso da escravidão. Está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais e nas trocas de insulto diárias que aparecem nas redes sociais. Mas me preocupa muito o clima de polarização e até de ódio com que essas discussões têm sido travadas. Acho que em nada contribui para a construção do Brasil dos nossos sonhos. Mais preocupante é ver que a discórdia muitas vezes é semeada por quem deveria dar exemplos de serenidade, discernimento e sabedoria. Infelizmente, isso inclui o próprio presidente da República. Durante a campanha eleitoral de 2018, fiquei assustado com a crueza e a falta de sensibilidade que o candidato Jair Bolsonaro demonstrou ao tratar de temas como a escravidão, o papel das mulheres, os direitos dos homossexuais, dos emigrantes e das pessoas mais pobres na sociedade brasileira. Esse discurso de ódio e enfrentamento rendeu votos e muita gente se valeu dele para ser eleita em 2018, mas esperava que, passada a campanha eleitoral, o discurso, o comportamento e as decisões dos eleitos fossem diferentes. Não é o que está acontecendo. Espero, portanto, que o presidente Bolsonaro deixe para trás o discurso de palanque e governe para todos os brasileiros, levando em conta principalmente os mais fracos, os mais necessitados, os mais desprotegidos. Precisamos urgente cicatrizar as feridas, superar as divisões e encontrar pontos de união, que nos ajudem a caminhar em direção ao futuro e enfrentar os desafios mais urgentes. Espero que o meu livro contribua com algum traço de racionalidade no debate.
Com o livro 1808, podemos perceber (e entender) o processo de corrupção no Brasil, que já existia (e muito) no período da Monarquia. Com “Escravidão”, qual relação podemos traçar com o período atual?
Nas raízes africanas estão os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional. Para isso é preciso observar o que fizemos os nossos índios e negros, quem teve acesso às oportunidades e privilégios ao longo da nossa história e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia até os dias de hoje. Maior território escravista da Américas, o Brasil abandonou os ex-escravos e seus descendentes à própria sorte depois da Lei Áurea de 1888. O resultado foi uma sociedade organizada em sistemas de castas, que permanece entre nós. O topo da pirâmide tem acesso às melhores oportunidades, o que inclui, infelizmente, repartir os recursos do Estado entre si por meio de um antigo sistema de promiscuidade entre os interesses públicos e privados, como temos visto nesses últimos anos nas denúncias da Operação Lava-Jato. A história da escravidão ajuda a entender esses mecanismos de predação dos recursos públicos, que, desse modo, nunca chega a quem realmente deles necessita.
Você já pesquisou minuciosamente a vinda da Corte para o Brasil. Ou seja, falou nos primeiros livros de monarquia, riqueza, luxo, poder. Agora, pesquisou sobre a escravidão. Qual o mais difícil de aprofundar a apuração?
A escravidão é um tema doloroso, repleto de sofrimento e crueldade, portanto mais difícil de ser trabalho na pesquisa para um livro do a história monárquica ou republicana brasileira. E há muitas narrativas e interpretações que se contradizem. A escravidão descrita em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é bem diferente da que aparece nos livros de escritores negros, como Abdias Nascimento e Clóvis Moura. Isso exige muito cuidado e discernimento na hora de pesquisar e escrever sobre o assunto. Também por essa razão, logo na introdução do meu livro, eu defendo a tese de que, no estudo da escravidão, existem diferentes possíveis olhares: o olhar negro, o olhar branco e o olhar atento, no qual eu procuro me enquadrar. Há diferenças importantes entre esses “olhares”. O olhar negro está presente nas obras, por exemplo, de Abdias Nascimento e Clóvis Moura, e em geral reconhece o papel do africano e seus descendentes, protagonistas de uma história tão antiga e pródiga quanto o continente de que são oriundos os escravos e seus descendentes. O olhar branco tem como exemplo Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e perpetua os registros de uma história repetida desde os tempos do colonizador europeu, perfeitamente condizente com interesses e perspectivas eurocêntricas e caucasianas presentes nas narrativas tradicionais da historiografia brasileira. Cabe ao “olhar atento”, contemporâneo, assimilar a complexidade dessas duas histórias, incorporando novos ingredientes ao seu relato e análise, dispondo-se a oferecer uma compreensão mais ampla e ao mesmo tempo mais sutil e refinada da escravidão. Na perspectiva oferecida por esse “olhar atento”, seria possível identificar e destacar novas narrativas e reinterpretar heróis, acontecimentos e consequências que marcam quatro séculos de uma convivência ainda hoje pendente de reconciliação. Acredito que seja essa a atitude mais desejável atualmente.
Fernando de Noronha foi o primeiro traficante de escravos do Brasil. Hoje, quando se fala em “Fernando de Noronha”, todos se remetem a um lugar paradisíaco. Por que o Brasil tem a mania de envaidecer quem comete atos ilícitos?
Dias atrás, o nosso vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, causou controvérsia com uma série de tuítes na qual homenageava os colonizadores portugueses e os bandeirantes como exemplos de “empreendedores” na história brasileira. Eu evitei entrar na polêmica, mas, se tivesse de entrar, teria recomendado ao general Mourão estudar bem a história do nosso primeiro “grande empreendedor”, Fernando de Noronha. Coube ele a inaugurar o tráfico de escravos no Brasil. Em 1511, ou seja, apenas uma década após a chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral à Bahia, a nau Bretoa, de propriedade do florentino Bartolomeu Marchionni e de Fernando de Noronha, atracou em Portugal com uma carga de papagaios, peles de onça-pintada, toras de pau-brasil e 35 índios cativos. Noronha era um cristão-novo, ou seja, judeu recém-convertido ao cristianismo. Coube a ele, portanto, inaugurar o tráfico de escravos no Brasil. Hoje dá nome ao famoso arquipélago transformado em reserva ambiental, situado na costa nordestina, mas, além dele, diversos outros traficantes de escravos foram homenageados em todo o país. Um caso famoso é o do bandeirante Raposo Tavares, que dá nome a uma importante rodovia no interior de São Paulo. Era um grande caçador e escravizador de indígenas. Numa só expedição, capturou 50.000 índios guaranis, vendidos em São Paulo, cuja primeira atividade foi ser uma “feira de trato”, ou seja, um mercado de escravos indígenas.
Após tanto tempo de tráfico de escravos da África para o Brasil, como o povo africano encara, atualmente, esse período da história?
Em todas as minhas cinco viagens a oito países africanos, ao longo do segundo semestre de 2017, eu, como brasileiro, me senti sempre muito bem acolhido e muito bem tratado. Não observei qualquer traço de ressentimento de cobrança ou ressentimento relacionado a história da escravidão. Coisa bem diferente ocorre, por exemplo, em Angola em relação aos portugueses, que hoje ainda são apontados como os culpados pelos principais problemas do país. Isso acontece porque o chamado processo de “descolonização” ainda é bem recente. Houve uma guerra contra os portugueses durante a independência de Angola apenas meio século atrás. Por isso, o clima de má vontade de parte a parte é ainda muito grande. Em relação ao Brasil isso não acontece. Ao contrário. Senti que, se dependesse dos africanos, a aproximação seria maior do que a que temos hoje.
Durante a pesquisa, qual a situação que mais te surpreendeu?
Um detalhe que me surpreendeu bastante foi descobrir que escravidão nem sempre foi sinônimo de cor negra da pele. Até o final do século 17, a maioria dos escravos no mundo era constituída por pessoas brancas. A própria palavra “escravo” – “slavus’, em latim; “slave”, em inglês – deriva de “eslavo”, povo branco, de olhos azuis, que desde a antiguidade era escravizado no leste europeu e vendido na região do Mar Mediterrâneo. Essa noção de que escravo é sinônimo de negro, ou de que negro é igual a escravo, foi construída pelos brancos europeus, colonizadores e escravocratas durante o período colonial. Até o início da expansão portuguesa na África, entre os séculos 15 e 16, o cativeiro e o tráfico de cativos afetavam indistintamente muçulmanos e cristãos, brancos e negros, independente da crença religiosa ou da cor da pele. No século nove, por exemplo, o califa de Córdoba, na atual Espanha, tinha um exército de aproximadamente 60 mil escravos capturados entre cristãos brancos europeus. Escravos muçulmanos brancos foram empregados na reconstrução da catedral de Santiago de Compostela, também na Espanha, por volta de 1150, enquanto, na mesma época, cativos cristãos brancos ajudavam a erguer a mesquita de Cutubia, em Marrekech, no atual Marrocos.