Há 12 mil anos, lá estava ele. Vestígios arqueológicos encontrados no Norte de Minas revelam que, muito antes de o Brasil ser Brasil e a população local ser apelidada de “índios” por povos de terras distantes, eram as águas do Rio Opará (ou “rio grande”, em tupi-guarani) que garantiam a vida local. Em 4 de outubro de 1501, quando a comitiva de Américo Vespúcio fazia uma expedição de reconhecimento na costa brasileira, ele virou “São Francisco”, em homenagem ao santo do dia, o italiano São Francisco de Assis. Mais de cinco séculos depois, às margens do mesmo rio que moldou histórias e garantiu sobrevivência, as comunidades do entorno convivem com a falta de água potável e de tratamento de esgoto. 

Apenas 12 das 504 cidades que compõem a bacia do São Francisco no país têm 100% do esgoto tratado. Realidade que se reflete nas escolas: 30% das instituições de ensino da rede estadual em Minas Gerais sem tratamento adequado dos resíduos estão nesses municípios. O que parece ser só um número, na prática, mostra como a falta de saneamento em escolas mineiras é, em última análise, um problema com repercussão nacional.

“A falta de saneamento básico nas escolas é um retrato da realidade das cidades da bacia. O depósito de esgoto no São Francisco é um dos principais desafios que enfrentamos na atualidade, porque ocasiona problemas enormes para toda uma população que está rio abaixo. Estamos falando de 18 milhões de brasileiros que dependem direta e indiretamente dessas águas, seja para abastecimento humano, dessedentação animal ou produção agrícola. Isso, sem contabilizar as pessoas que estão recebendo a água da transposição do rio”, explica o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Maciel Oliveira. O projeto estende as águas do Velho Chico para 390 cidades de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, totalizando mais 12 milhões de pessoas beneficiadas pelas águas do rio. 

No quilombo de Alegre, em Januária, a cerca de 5 km do Velho Chico, em torno de 300 alunos da Escola Estadual Antônio Corrêa e Silva se hidratam com segurança quando estão em sala de aula graças à água da chuva captada em cisternas, enquanto em casa a maioria das famílias segue recorrendo a poços artesianos sem garantia de qualidade da água utilizada.

“Os alunos ficam pouco mais de quatro horas na escola com água tratada. Mas em casa tomam água sem tratamento”, diz o diretor da escola, Odair de Almeida. Ele faz questão de reforçar a importância do rio em uma comunidade que se formou em contato direto com suas águas. Um dos desafios quando ele assumiu a gestão da escola foi a alta evasão de alunos que acompanhavam os pais em atividades na beira do Velho Chico: “A ligação com o rio era grande. Muitos pais iam para o rio e ficavam lá até 20 dias com os filhos”. Uma realidade que mudou com a maior presença dos estudantes na escola. 

Rastro de destruição

Impactos. Segundo o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Maciel Oliveira, o esgoto que chega a qualquer trecho do Rio São Francisco deixa um rastro de impactos. “O rio tem diminuído a vazão, mas o esgoto aumentou. Em Alagoas, já ocorreu de a matéria orgânica acumulada levar à paralisação momentânea do abastecimento de água”, conta. 

Brasil afora

Gigante. Terceiro maior rio do país, o São Francisco tem uma extensão de 2.700 km entre a Serra da Canastra, em São Roque de Minas, onde nasce, e a foz entre os estados de Sergipe e Alagoas. Ele banha Minas, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. A bacia hidrográfica também envolve parte de Goiás e do Distrito Federal. Só em Minas, 248 cidades são banhadas pelas águas do Velho Chico.

Agroecologia: Estrutura transforma dejetos em adubos

Mais de 40 escolas localizadas no trecho final da bacia do Rio São Francisco receberam fossas agroecológicas como opção sustentável para reduzir os impactos da falta de saneamento na região. O programa das Expedições Científicas do Baixo São Francisco, com foco na área que engloba Bahia, Alagoas e Sergipe, dá destinação correta ao esgoto gerado nas instituições de ensino e ainda propicia condições para plantação de banana e mamão, usados na merenda escolar. 

“As pessoas reclamavam que as fossas nas escolas não tinham manutenção correta, estouravam e contaminavam as ruas da região. Então adaptamos o modelo de fossas agroecológicas e implantamos em mais de 40 instituições de ensino. Depois disso, algumas prefeituras replicaram o modelo em outras escolas”, conta o coordenador-geral do programa e professor da Universidade Federal de Alagoas, Emerson Carlos Soares. 

A fossa agroecológica pode passar por manutenção a cada dez anos, o que elimina o risco de transbordamento de esgoto a curto prazo. Feito com restos de materiais de construção e pneus de automóveis descartados, o sistema permite que bactérias façam a decomposição da matéria orgânica, o líquido evapore sem os agentes contaminantes e, ao final, o nutriente que se forma com a ação dos microrganismos sirva de adubo para plantação de bananas e mamão. “O que é plantado é servido na merenda escolar e sem qualquer risco de contaminação”, explica o pesquisador. Pais de alunos dessas escolas têm replicado em suas casas o modelo, eliminando fossas rudimentares.