Um lote discreto e cercado por tapumes, localizado em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte, tem sido assunto para os vizinhos do bairro Imperador nos últimos dias. O local é apontado como a residência da mãe dos garotos que estavam em cárcere privado em Belo Horizonte. A mulher segue presa.
A reportagem de O Tempo esteve no local nesta sexta-feira (24 de fevereiro) e descobriu que os próprios vizinhos estão em choque com a notícia de que a mulher vivia nesse endereço. Segundo relatos de pessoas que optaram pelo anonimato, várias famílias vivem nesse terreno, mas a rotina de todos eles é um absoluto mistério.
Um desses vizinhos, que preferiu não se identificar, conta que, apesar das várias residências que existem dentro do lote, raramente os moradores eram vistos. "É tudo muito estranho, a gente não sabe quem mora aí, nunca viu ninguém na rua e não ouve nada daí de dentro. Ficamos até surpresos quando vimos que essa mulher, que passou no jornal, vivia aqui, porque ninguém nunca havia visto ela ou essas crianças", diz.
A mãe está presa desde o dia 6 de fevereiro, quando um outro filho dela, de 4 anos, morreu na UPA de São Joaquim de Bicas vítima de maus tratos. Com ela, um outro rapaz apontado como companheiro dela também foi preso. A defesa desse homem negou que houvesse um relacionamento entre os dois, e deu detalhes sobre como funcionava a rotina desses moradores.
De acordo com a defesa, no local funciona um centro religioso, que acolhe pessoas necessitadas e oferece lar temporário para aqueles que não têm para onde ir. A defesa confirmou que os filhos viviam com a mãe neste endereço e afirmou que todos passavam por dificuldades financeiras. O homem também está preso.
Confusão e cárcere privado
Se a rotina dos moradores era um mistério, a pessoa responsável pelo lote era bem conhecida entre os vizinhos. Apontada como Maria Rosa, a mulher já teria se envolvido em diversos atritos envolvendo os limites do terreno.
"Existe uma área atrás dos nossos lotes que é da prefeitura, e que eles insistem em construir. Essa moça mesmo já esteve aqui na minha casa, me ameaçou de morte e disse que eu deveria ficar de bico fechado, que a gente não sabe de nada", diz outro morador.
A defesa da mãe da presa alega que essa mulher é responsável pelo aliciamento e cárcere privado ao qual ela era mantida desde que chegou a Belo Horizonte, sendo abordada ainda na rodoviária, junto da família. Maria Rosa - que é identificada mulher também é investigada pela Polícia Civil. Nesse mesmo local, a mulher alega que era mantida em condição análoga à escravidão.
O endereço foi visitado pelos investigadores da Polícia Civil, que não encontraram mais nenhuma família vivendo no local. O inquérito sobre o abandono dos garotos e a responsabilidade dos envolvidos ainda está em aberto.
Entenda o caso
- O resgate
As crianças, de seis e nove anos, foram resgatadas na terça-feira, 21 de fevereiro, trancadas em um apartamento do bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Segundo a Polícia Militar, elas estavam com sintomas de desnutrição e febre. Elas ficaram trancadas por três dias, sem alimentação.
Conforme informado pela polícia, as vítimas estavam magras, usavam roupas sujas e o ambiente onde elas estavam era escuro e encardido. Após o resgate, as crianças foram encaminhadas para o hospital Odilon Behrens, no bairro São Cristóvão.
- A denúncia
A denúncia foi feita por uma vizinha, a vendedora Poliana Pereira dos Santos, de 37 anos. Ela acionou a polícia depois que percebeu que elas estavam sozinhas no apartamento e sem o auxílio de familiares. Ela tentou alimentar as crianças por um buraco na parede do apartamento. A porta da residência onde elas estavam foi trancada com um cadeado e correntes.
- O local em que as crianças estavam
Conforme a denunciante, no local em que as crianças estavam, havia uma vasilha de comida com bicho. Em entrevista ao TEMPO, ela descreveu o cenário. "Encontramos muita sujeira, o cheiro era tão forte que, quando os policiais abriram a porta, nem eles aguentaram. A gente se emocionou muito quando vimos os dois, com os bracinhos fininhos, um deles sem conseguir nem falar. Aí começamos a chorar. Aqui tudo sujo, tudo podre, vasilha com bichos, colchão no chão", relatou.
- Menino sentiu cheiro de churrasco e pediu comida
Uma das crianças resgatadas pediu um pouco de comida para a vizinha depois que sentiu o cheiro do churrasco que era feito por ela. "Meu sobrinho estava andando de bicicleta aqui e, pelo buraquinho, ele viu e pediu um pouco de comida. Meu sobrinho, que tem mais ou menos a idade dele, veio até mim e contou. Fui até a porta e vi os dois, um deles disse que estava com fome e pediu churrasco para ele e o irmão. Pedi para ele abrir a porta, e ele falou que podia ser por ali mesmo. Falei que a vasilha não cabia no buraco. Ele, então, sugeriu que eu colocasse em uma sacolinha e disse 'eu estou com muita fome, me dá churrasco'", detalhou a vendedora Poliana dos Santos, de 37 anos, responsável por fazer a denúncia para a polícia.
A criança disse para a vendedora que elas estavam acompanhadas da avó. No entanto, o menino voltou a pedir comida durante a noite daquele dia, o que intrigou a vizinha e indicou de que elas estariam sozinhas.
- Os responsáveis pelas crianças
A investigação apontou que as crianças são filhas de uma mulher, de 30 anos, que foi presa por maus-tratos a outro filho, morto no último dia 6 de fevereiro. O caso foi registrado em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana da capital. De acordo com o boletim de ocorrência, no início do mês, a mulher levou o filho de 4 anos ao médico, mas a criança já estava morta. O menino chegou com lesões no olho, inchaço no pé e queimaduras no tornozelo.
O pai biológico das crianças, segundo a apuração do caso, teria morrido de Covid-19, em 2020. Em depoimento à polícia, uma das vítimas resgatadas no apartamento, na última terça-feira (21), informou que elas haviam vindo de São Joaquim de Bicas, na semana anterior ao resgate, e que a avó teria passado a noite de sábado (18) com elas, mas não retornou.
- Crianças resgatadas possuem duas irmãs que estão em abrigo
Duas meninas, de 1 e 2 anos, que são irmãs dos meninos resgatados na última terça-feira, dia 21 de fevereiro, no bairro Lagoinha, estão em um abrigo, sob a tutela do Estado. A informação foi confirmada ao TEMPO pelo Conselho Tutelar de São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte.
As meninas foram encaminhadas para unidade no dia 6 de fevereiro, depois que a mãe delas foi presa após levar um de seus cinco filhos, um garoto de 4 anos, com ferimentos para uma unidade hospitalar da cidade. O menino acabou morrendo devido à gravidade dos ferimentos que sofreu. No momento da prisão, a mulher teria omitido a existência dos dois filhos mais velhos, de 6 e 9 anos, resgatados na capital mineira.
- A investigação
A Polícia Civil abriu um inquérito para investigar o caso e, até o momento, a mulher que estaria cuidando e teria abandonado as crianças no local ainda não foi identificada e presa. O Ministério Público de Minas Gerais informou, por meio de nota, que o caso é investigado e que as informações estão sob sigilo.