Universitárias, vítimas de violência sexual que recusaram o aborto legal, assalariadas inseridas no mercado, gestantes financeiramente impossibilitadas de criar seus bebês e outras que não alimentam o sonho de ser mãe compõem cinco entre os perfis mais comuns de mulheres que recorrem às Varas da Infância do Estado movidas pelo desejo de entregar seus recém-nascidos ao Sistema Nacional de Adoção (SNA).

Independentemente de suas razões e histórias, essas mulheres são rodeadas por tabus seculares ligados à ideia da maternidade e à adoção de crianças, conforme sustenta Angélica Gomes Dias, assistente social da comarca de Uberaba, no Triângulo Mineiro. 

“A entrega é cercada por um preconceito oriundo do ‘mito do amor materno’. Ele é a concepção de que todas as mulheres nasceram para ser mães e estão dispostas a amar, cuidar e permanecer com seus bebês. Lidamos com a maternidade como um sinônimo de ser mulher. Então, muitas delas nos questionam: como levar uma gestação por nove meses e não permanecer com o bebê? A comunidade dirá que ela é incapaz de amar. São julgamentos enraizados”, explica. 

Aspectos religiosos advindos das raízes cristãs da sociedade brasileira temperam preconceitos ligados à entrega voluntária, como avalia Daniele Bellettato Nesrala, defensora pública à frente da Coordenadoria Especializada da Infância e Juventude. 

“Pela formação religiosa do nosso país, há uma ideia fortalecida em torno do mito da mãe. A mulher é obrigada a amar o filho, e a entrega é lida como uma desonra”, conta.  

Capacitações elaboradas nas instâncias do poder público mineiro nascem dessa urgência de romper os tabus e garantir que a rede de apoio – formada à linha de frente por assistentes sociais, psicólogos e trabalhadores da saúde – acolha a grávida no instante em que ela declarar seu desejo pela entrega. 

“Cabe a nós informá-la sobre o que é o Entrega Legal e como ele acontece, sem juízo de valor e sem dizer à mulher que a atitude dela é certa ou errada. Cada uma sabe da própria realidade”, reforça Daniele.  

O respeito à opção da mulher que decide pela doação é lido como ferramenta indispensável à atenção da genitora pela rede psicossocial, como insiste Elizabeth Caetano de Oliveira. Há duas décadas no Hospital Sofia Feldman, na regional Norte de Belo Horizonte, a assistente social acolhe na maternidade mulheres recém-chegadas de todas as regiões do Estado e fornece as primeiras orientações àquelas que desejam a entrega. 

“O mais importante para o serviço social é o respeito à decisão da mulher. A entrega é um ato de responsabilidade da mulher. Nós sentimos que elas têm muito medo de serem julgadas. É um processo de muito sofrimento”, garante.

Assim como no Sofia Feldman, a grávida que decide pela entrega pode acordar com a equipe médica que sejam seguidos protocolos desde o parto até o momento final da entrega, podendo optar por não ver o bebê após o nascimento, não o tocar ou nem o amamentar. 

Direitos  

A garantia sobre o sigilo da mulher em relação ao nascimento do bebê e à entrega voluntária e sobre a possibilidade do arrependimento não foram os únicos direitos trazidos pela legislação sancionada em 2017 – e reforçada em Minas Gerais pelo projeto Entrega Legal.

O texto prevê, por exemplo, que ela não é obrigada a revelar a identidade o pai da criança. A grávida que quiser pode indicar à Justiça algum membro de sua família direta para ganhar a guarda do bebê e adotá-lo.  

Privações

A inexistência de uma única razão comum às mulheres que buscam a entrega voluntária é consenso entre especialistas ligados à infância. Para eles, certo é que cada mulher carrega consigo seus próprios motivos. “Nenhuma história se repete”, garante a assistente social Angélica Gomes da Silva.

Apesar de serem muitas as razões relatadas pelas gestantes que procuram a justiça, muitos dos motivos têm origem semelhante – são, por exemplo, fruto de privações sociais e econômicas sofridas por elas.

A cartilha do programa Entrega Legal traz algumas justificativas que são mais recorrentes: ausência de amparo familiar ou social, dificuldade de acesso às políticas públicas para promoção da cidadania, aspectos de cunho emocional – como abandono pelo pai do bebê, gravidez indesejada, gravidez decorrente de estupro e aspectos psíquicos subjetivos. 

Luto 

Na audiência que conclui a entrega voluntária, o magistrado pergunta à mulher se o recém-nascido será registrado com nome por ela escolhido. Ainda que a nomeação feita pelos pais biológicos possa ser substituída pela família adotiva no registro oficial da criança, o juiz José Honório de Rezende, da Vara de Belo Horizonte, entende que a definição de um nome auxilia no alívio do sofrimento sentido pela genitora com a doação. 

“É rara uma audiência não terminar em choro. Em um dos casos em que atuei, o casal decidiu pela entrega porque não tinham condições emocionais de criar o bebê, mas o desejo deles foi dar nome ao filho. O nome é um gesto para ressaltar que a criança é importante para eles. É um momento de muita dor”, afirma. 

Segundo Angélica Gomes Dias, para algumas mulheres a entrega assemelha-se a um processo de luto. “Insistimos em as acolher com cuidado porque muitas delas podem acabar levando a perda como luto insuperável para o resto da vida, procurando na multidão um bebê que não tem rosto. A decisão dói, e nós, enquanto serviço público, devemos cuidar para elas poderem se restaurar, se fortalecer e seguir com suas vidas depois da entrega”, assevera. 

Para algumas grávidas, Angélica aconselha que seja escrita uma carta para o bebê. “Orientamos, àquelas que quiserem, que escrevam uma carta de despedida para o bebê. Muitas optam por escrevê-la para mostrar à criança que ali havia uma relação de cuidado, um desejo da mulher de que o bebê fosse feliz e amado”, explica a assistente social. A mensagem é entregue à família adotiva, que escolherá mostrar ou não à criança no futuro.

Angélica entende que o recado escrito pela mãe biológica é também importante para o bebê. “É um cuidado que ajuda no fortalecimento emocional da criança. Com a carta, ele entende que a mulher, a mãe, pensou no melhor para ele. E que a história dele não é de abandono, mas de proteção”, conclui.