O azul da paisagem deu início ao formigamento. Aquele era um dia como outro qualquer, sob o sol escaldante da cidade em sua hora mais quente. Transitando distraidamente pela avenida do Contorno, eles então notaram que o muro havia sido pintado daquela cor. Logo na manhã seguinte já estavam determinados a retornar à cena com um pedido de autorização, prontamente aceito. Nascia assim a 2ª edição da Sopa Nacional, um dos maiores encontros de graffiti do país, que irá reunir 100 artistas urbanos de todas as regiões do Brasil neste sábado (26) das 8h às 18h no Barro Preto. 

A intervenção na paisagem com a criação de um painel colaborativo de grandes dimensões no formato “Sopa de Letras” – que justifica o batismo da empreitada – se dará justamente no muro da ASMARE (Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis) que despertou a atenção de João Marcelo Capelão e Stephanie Ribeiro, conhecidos respectivamente como Goma e Tefa, responsáveis pela iniciativa. 

“A escolha do muro da ASMARE carrega um simbolismo potente. A cooperativa é referência nacional na luta por direitos dos catadores e catadoras e representa um movimento social atuante e legítimo. Essa decisão traduz o conceito de arte relacional que sustenta a Sopa Nacional, uma arte que se dá no encontro, no diálogo com o território e com as pessoas que o habitam”, afirma Tefa, conhecida grafiteira da capital.

Ela lembra que o local já possui “uma história com a cena da arte urbana de BH, sendo palco de eventos marcantes, incluindo o último painel do artista AMIGO, que faleceu em 2011”. Para Tefa, realizar o evento na ASMARE significa “unir arte, território e sustentabilidade e honrar os movimentos invisibilizados da cidade”. “Estabelecemos essa conexão e integramos os catadores ao movimento da arte urbana”, proclama.

Batismo

Gratuito e realizado pelo coletivo cultural Real Grapixo, que atua há mais de uma década em Belo Horizonte, o Sopa Cultural também vai levar ao público uma programação musical com DJ, barracas de alimentação e estrutura para receber aproximadamente 10 mil pessoas, entre visitantes, artistas, produtores e agentes da cultura. O nome por trás da ideia adveio da vontade de comunhão. Consolidada na cena do graffiti, a prática conhecida como Sopa de Letras “valoriza a escrita, seja em letras bomb, throw up, grapixo ou personas, e exige interação entre estilos e artistas, o que resulta em uma composição plural e relacional”, explica Tefa. 

Segundo ela, “o conceito parte da mistura de estilos, trajetórias e territórios, refletindo a diversidade cultural do país”. “A curadoria prioriza essa pluralidade, fomentando o encontro entre gerações e oferecendo espaço para artistas que ainda não circulam nos grandes festivais. O intuito é promover acesso, inclusão e visibilidade a nomes diversos, fortalecendo a cena como um todo”. Prova dessa amplitude é que mais de 770 artistas de todo país se inscreveram para a atual edição do Sopa Cultural

Goma aponta que o maior desafio ainda é “conseguir apoiadores que abracem a causa”. “Para levantar um acontecimento desse porte é preciso fornecer material, hospedagem, alimentação, tintas para preparação do muro, sprays e etc”, detalha. Diante da dificuldade financeira vivenciada por cada artista para chegar a BH, “sendo que a maioria está saindo do seu Estado pela primeira vez”, Goma celebra “poder proporcionar essa felicidade para todos eles, além de presentear a população com um painel de 180 metros quase no centro da cidade, em um local onde trabalham pessoas humildes como nós”. 

História

Considerada um marco para a cena do graffiti mineiro, a primeira edição do Sopa Nacional aconteceu em 2019, no Aglomerado da Serra, e cativou o público. Tefa defende que a iniciativa “carrega a essência do graffiti”. “A segunda edição busca consolidar BH como polo da arte urbana no país, inserindo a cidade na rota dos grandes festivais de graffiti. O projeto contribui para a valorização e profissionalização dos artistas urbanos, reafirmando seu lugar como produtores de arte visual contemporânea. Mais que um mural, a Sopa é uma experiência de intercâmbio cultural. O legado está na democratização da cena, no fortalecimento de trajetórias periféricas e na ocupação do espaço público como território de arte, encontro, transformação social”.

Ela observa que, “desde o início até os dias atuais, o graffiti ganhou força, visibilidade e se firmou como a principal expressão estética da juventude periférica”. “Em constante reinvenção, ele acompanha as transformações sociais e tecnológicas, mas mantém sua essência ligada ao Hip Hop, um movimento social e político de resistência. O graffiti é um saber que atravessa gerações, transmitido nas ruas, nos muros e nos encontros. Os artistas mudam, mas os dilemas sociais permanecem: desigualdade, violência, invisibilidade. E é sobre isso que o graffiti fala”, afiança.

Essas características permitiriam que, “mesmo com o interesse do mercado e a tentativa de absorção pela lógica capitalista”, a linguagem permanecesse como “movimento artístico daqueles que estão à margem”. “A arte influencia no desenvolvimento do pensamento crítico, e os artistas urbanos estão atentos às tentativas de apropriação do movimento. Ele pode ocupar galerias, mesmo que a passos lentos, mas nunca abandona a rua. É uma linguagem coletiva, insurgente, que questiona normas e desigualdades sociais. Valoriza o ‘vulgo’ (apelido do artista) e a vivência. Sua potência está justamente em não se dobrar. Ele resiste. Nós resistimos”. 

Resistência

Tefa afirma que “ser do graffiti é mais do que dominar uma técnica, é estar inserido em uma cultura, em uma linguagem própria que envolve identidade, atitude e posicionamento”. “O que torna um graffiti marcante não é apenas o traço ou a estética, mas quem está por trás dele, a vivência, a história e a intenção do artista. Estar na cena é entender que estamos sempre de olho no todo, na coerência entre discurso e prática, na forma como a pessoa se movimenta na rua, nas trocas com outros artistas, com o território. Mas não no sentido de fiscalizar, e sim como forma de pertencer e direcionarmos uns aos outros”. 

A artista e produtora cultural prefere não denominar e criar um padrão para o que seria “um graffiti bonito”. “O que existe é expressão autêntica. Cada artista desenvolve seu estilo, sua linguagem e sua abordagem visual. E, dentro disso, é claro que existe um espaço para a evolução técnica, para conhecer a fundo os materiais, dominar o uso de sprays, tintas, rolos, entender como combinar cores, luz e sombra. Tudo isso fortalece o impacto visual do trampo. Um bom graffiti é aquele que comunica, que impacta, que gera reflexão ou simplesmente que impõe presença”, sustenta Tefa. 

Mesmo com o corre grande para viabilizar a atual edição da Sopa Nacional, ela já pensa em sua continuidade no horizonte, com aquela boa utopia que mantém seus pés fincados na realidade a fim de modificá-la. “Nosso objetivo é consolidar a Sopa como um encontro anual de graffiti em Belo Horizonte, fortalecendo a cidade como referência nacional na cena da arte urbana. A articulação é contínua, seguimos construindo com parceiros, artistas e com a própria rua. Já realizamos edições da Sopa de Letras de forma independente em outros Estados, como Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul e Goiás. Mas, agora, nosso foco está em fortalecer nossas raízes, firmar o projeto em BH e expandi-lo com ainda mais estrutura e visibilidade. Queremos crescer com consistência, sem perder a essência. E futuramente levar o projeto para outros territórios e formatos, sem nunca deixar de lado a conexão com a nossa quebrada”, arremata. 

Serviço

O quê. 2ª edição da Sopa Nacional

Quando. Neste sábado (26), das 8h às 18h 

Onde. Muro da ASMARE (av. do Contorno, 10.555, Barro Preto)

Quanto. Gratuito