O preceito filosófico criado pelo matemático francês René Descartes (1596-1650), que preconizava o “penso, logo existo”, parece ter sido substituído, na era dos algoritmos, por algo como “sou visto, logo existo”. Essa necessidade de exibição tem trazido à tona um termo novo, conhecido como “narcisismo digital”, em que o mito do jovem que se apaixonou pela própria imagem é utilizado para explicar uma tendência pouco saudável no mundo contemporâneo, como explica a psicóloga Marcelle Primo.
“Os usuários das redes sociais precisam, e é estranho dizer isso, e ‘trabalham’ com a atenção que recebem dos outros. O que está em jogo nesses ambientes é o quanto a sua atenção vale, e vale muito! Seja para vender um produto, uma ideia, ou só se mostrar, o céu já deixou de ser o limite há muito tempo”, analisa a psicóloga, traçando uma comparação. A professora de educação física Priscila Reis, de 30 anos, confessa que já se sentiu escrava do mundo digital. Ela chegou a ficar tão dependente dos retornos do que postava que decidiu dar um tempo nessa relação.
“Fechei o meu Instagram e fiquei mais de um mês fora das redes, porque a minha vida estava limitada àquilo. Quando voltei, já não senti a mesma importância. Passei a aproveitar mais o dia e as coisas simples da vida”, conta ela, que, nesse processo, teve apoio psicológico. O advogado André Figueiredo, 35, passou por algo parecido, mas ainda não conseguiu se livrar totalmente do vício. “Coloquei aquela ferramenta que determina o tempo que a gente fica no Instagram, mas acabo burlando a regra que eu mesmo ativei”, admite André, que mostrava toda sua rotina através dos stories da rede. Marcelle alerta que “o narcisismo digital cria outro modo de ser narcisista que implica a necessidade de validação com quantidades avassaladoras de participantes”.
“Como os conteúdos veiculados estão sempre amarrados a demandas pessoais ou de mercado, a conduta é de alimentação eterna. Sempre haverá algo novo ou inexplorado. E, mesmo que já tenha sido mencionado anteriormente, há outros modos de dizer sobre o mesmo assunto”, sublinha a psicóloga, que ressalta outra característica particular. Com o detalhe da perda de fronteira geográfica e de língua. O usuário pode estar na própria cidade ou em qualquer parte do mundo. Se Narciso precisou de apenas um reflexo na água para se apaixonar por si, nas redes sociais são milhares de centenas de reflexos, de likes, de comentários, e, principalmente, de problemas acarretados para as pessoas mais frágeis e suscetíveis ao adoecimento psíquico”, diz.
Diferenças
Marcelle traça diferenças que podem ajudar as pessoas a diagnosticarem se o comportamento delas se tornou passível de irem para o divã. “O exibicionismo online pode trazer malefícios em menor escala, pois é o sujeito quem publica o conteúdo que sofrerá com as consequências da exposição de sua imagem. Há algum controle mínimo a respeito do que ele está fazendo e seu objetivo maior é se exibir. Ele quer ser visto e não necessariamente se alimenta das reações dos outros, visto que o propósito é se lançar para o outro visando a si”, conceitua a especialista.
No caso do narcisismo digital, ela afirma que existe “alguma forma de dependência da aprovação, da reação positiva e do que o outro tem a falar sobre a publicação”. “A relação com o que vem depois da publicação é maior, mais intensa e movimenta os afetos e emoções de alguém a ponto dessa pessoa não querer mais sair de casa sem estar devidamente maquiada e arrumada como se fosse para um evento de gala para ir à padaria”, avalia. No entanto, como “a vida não funciona assim”, um dos grandes tormentos do narcisista digital é quando ele precisa “viver a realidade imperfeita e falha”.
“A maior consequência da validação digital é a perda de identidade e deixar que um outro, aleatório, que não tem intimidade nem participação efetiva no dia a dia, tome decisões por você. A personalidade narcisista se preocupa consigo e em alimentar e satisfazer seus desejos por atenção, bajulação, disputa e poder simbólico”, salienta a especialista. Como dizia Caetano Veloso na famosa canção, “Narciso acha feio o que não é espelho”. Todavia, essa postura tende também a atingir quem está à volta.
“O lugar do outro na vida de um narcisista é de uso e abuso. O outro aparecerá quando frustrar as expectativas de aceitação do narcisista”, diz Marcelle, que enumera exemplos de frustração do narcisista digital. “É quando as postagens não obtêm boas métricas, quando um determinado comportamento é radicalmente rechaçado pelo público, quando um produto não vende tão bem quanto o estimado ou quando uma roupa é ridicularizada em sites especializados. Lembrando que o mundo digital é muito mais vasto e desconhecido do que um círculo de seis amigos”, observa a especialista.
Soluções
Marcelle afirma que é preciso adaptar as estratégias terapêuticas para cada caso, já que as pessoas, suas demandas e histórias são únicas. “No caso da psicanálise, haverá uma busca pela compreensão das necessidades deste Eu narcisista e quais são os outros modos de satisfazê-lo, visando soluções diferentes das patologizantes. Para a terapia cognitiva-comportamental, a condução de tratamento apontará para uma avaliação do quadro geral do comportamento realizado e dos modos de modificá-lo ao buscar por outros repertórios e possíveis extinções. Eu sempre digo e repito que a estratégia mais eficaz é aquela que funcionará para o paciente, independentemente de qual for”, sustenta a profissional.
Ela não tem dúvidas de que o narcisismo digital é um problema que deve se tornar cada vez mais comum. “Os recursos tecnológicos disponíveis de alteração de imagem compõem um sistema que corrobora a fantasia de perfeição e imortalidade. O uso dessas ferramentas provoca uma sensação estética que desvia o corpo de sua condição principal, a de se deteriorar ao longo do tempo. Além da perfeição não existir, os corpos perdem, gradativamente, suas funções. É natural”, constata.
“O que não estava previsto é como imagens manipuladas causam o pensamento de inadequação, fazem surgir demandas por cirurgias plásticas específicas para ficar bem na foto, criam um nicho de consumidores de produtos estéticos sempre insatisfeitos com a própria aparência e formam profissionais da estética com técnicas que supram as necessidades desses usuários exigentes. Tais ferramentas extrapolam o seu ambiente digital e invadem o cotidiano sorrateiramente, como se não estivessem ali. Ou melhor, para, paradoxalmente, não serem vistas”, complementa Marcelle.
Necessidade de reconhecimento é legítima
A psicóloga Marcelle Primo explica que, “no desenvolvimento humano, a instância do Eu possui necessidades a serem supridas para que se constitua saudavelmente, como a atenção, o reconhecimento de quem somos e o que fazemos, a aprovação ou desaprovação de atitudes, o amor que nos é dado ou retirado”. Segundo ela, todos esses sentimentos “são legítimos”, já que, “ao nos tornarmos adultos, continuamos como participantes desse jogo de trocas com os outros, é necessário e parte da sobrevivência”, o que não deve ser confundido com o propalado “narcisismo digital”.
“O narcisismo digital é uma ciranda com regras próprias, realizadas em uma esfera artificial. Regras mais cruéis, de maiores proporções, que constituem uma invasão de uma horda de outros na vida digital e analógica de uma pessoa. A necessidade por aceitação e atenção no narcisismo digital parte de um alicerce colossal e impossível de ser manejado por muito tempo”, afiança a especialista, que, como exemplo, cita os casos de adoecimento mental de influenciadores digitais conhecidos, como Rodrigo Amendoim, Whindersson Nunes, Mari Maria, PC Siqueira e PewDiePie.