COMPORTAMENTO

Individualismo crescente leva à perda da capacidade de se indignar com a dor do outro

Para psicóloga, excesso de informação conduz à banalização do absurdo, com as pessoas aceitando cenário onde o chocante vira norma

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 23 de maio de 2024 | 06:00 - Atualizado em 23 de maio de 2024 | 13:59
 
 
 

Transtornado, o homem de porte esguio, cabelos desgrenhados e cenho franzido, sente as imagens da miséria atingirem-no como um punhal de fina e penetrante lâmina cravada na nuca. A cada quarteirão, sucedem-se homens e mulheres que se confundem com a sujeira das ruas, em expressões cadavéricas e degradantes, estendendo a mão na tentativa de manter acesa uma minguada esperança. A cena é uma das mais comoventes da série “Betinho: No Fio da Navalha”, da Globoplay, que retrata a trajetória do sociólogo mineiro que dedicou a vida a ajudar o próximo e, em 1997, aos 61 anos, morreu vítima da Aids, contraída após transfusão de sangue por conta de sua hemofilia.

Betinho foi o criador de iniciativas sociais que marcaram a história recente do Brasil, como a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, que eternizou o bordão “quem tem fome tem pressa”, mas, de alguma maneira, seu legado de luta e indignação parece ter esmaecido nos últimos tempos. Ainda na cena descrita, o sociólogo constata, arrasado, que “as pessoas perderam a capacidade de se indignar com a dor do outro”. A conclusão, infelizmente, é a mesma da psicóloga Carol Pinheiro. “A desigualdade social é um comportamento normalizado que deveria nos chocar. Essa desigualdade foi aumentando ao longo do tempo, mas nem sempre foi assim…”, avalia.

Em um poema célebre de Manuel Bandeira (1886-1968), publicado no dia 27 de dezembro de 1947, com a identificação de que o poeta pernambucano vivia, na ocasião, no Rio de Janeiro, o eu lírico descreve, espantado, uma situação insólita, ao tentar reconhecer qual bicho, afinal, cata comida entre os detritos, “na imundície do pátio”, engolindo o que encontra com voracidade. Ao final, o susto é ainda maior: “O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem”, conclui o poeta. Ali, embora já houvesse a degradação da miséria, o autor parece conservar, ao menos, certa capacidade de não naturalizar o horror da situação.

“Quando a gente se conscientiza de que eu e o outro somos um, e que eu tenho, sim, responsabilidade, pois tudo que eu faço na minha vida, todos os meus comportamentos estão interligados ao todo do qual eu faço parte, é possível manter a sensibilidade e não naturalizar o que é chocante”, aposta Carol. O mesmo vale para preconceitos que se arraigaram ao inconsciente coletivo, como o machismo, o racismo e a homofobia, que, inclusive, foram criminalizados pelo Superior Tribunal Federal (STF), que, em 2019, reconheceu que “atos atentatórios a direitos fundamentais” são passíveis de pena com privação de liberdade. Os crimes de transfobia também entraram na decisão.

Além de uma conscientização cultural, com base na educação, a psicóloga acredita que restaurar o hábito de não aceitar o inaceitável depende de um gesto contínuo e amplo de solidariedade, que ela define como “compreensão do nosso lugar no mundo”. “Enquanto uma pessoa está em sofrimento, eu também estou”, analisa. No fundo, é uma percepção que fundamenta, como pilar de sustentação, as concepções religiosas, pregadas, inúmeras vezes, nas passagens bíblicas que trazem à tona a figura de Cristo. Para se compadecer com a dor do outro, basta reconhecer a própria fraqueza e aceitar que, sendo todos iguais, posso ser eu quem estende o braço pela dor da fome.

Redes sociais aceleram tendência de normalizar o absurdo

A ideia de que a desigualdade é uma consequência natural das relações estabelecidas pelo ser humano foi difundida em larga escala, segundo a psicóloga Carol Pinheiro, pelo modelo de organização social, político e econômico atualmente vigente na maior parte do mundo, incluindo o Brasil. “O mundo do capitalismo nos leva a só querer ter, acumular, conquistar, ignorando por completo tudo que acontece à nossa volta, com os outros, sempre olhando para o nosso mundinho, nosso próprio umbigo, com um individualismo crescente, que afasta as pessoas de todas as questões coletivas”, salienta a psicóloga.

Não custa lembrar que, pela própria origem da palavra, no capitalismo o capital é o centro das relações, em detrimento do social e do comunitário, o que justifica, por exemplo, naturalizar comportamentos como a indiferença e o egoísmo diante de uma realidade chocante. O fato de crianças venderem balas nos sinais de trânsito para sobreviver há muito tempo parece não causar mais comoção na sociedade. De acordo com a Auditoria Fiscal do Trabalho, em 2023 havia, no Brasil, mais de um milhão de crianças e adolescentes submetidas ao trabalho infantil. “Essa tendência de normalizar o absurdo está relacionada ao ego, e cada um só pensa em si mesmo”, lamenta Carol.

Ironicamente, enquanto no mundo real as pessoas se fecham em interesses próprios que, muitas vezes escusos, não se constrangem em passar por cima do outro, nas redes sociais abundam as plataformas que apostam na curiosidade pela vida alheia, como é o caso do Instagram. “Com as redes sociais, vivemos também a normalização do excesso de informação. A gente vai mudando de uma coisa chocante para a outra sem se envolver de verdade, apenas como espectadores passivos que não têm nada a ver com aquilo, o que leva, consequentemente, à banalização de tudo, inclusive do que deveria nos chocar”, conclui a psicóloga, que ainda crê em uma “necessária mudança”.

Dica: A série “Betinho – No Fio da Navalha” está disponível para assinantes da plataforma Globoplay. Com Júlio Andrade, Leandra Leal, Humberto Carrão, Andréia Horta e Inês Peixoto no elenco, conta a história de vida e de luta do sociólogo Herbert de Souza, que sempre se indignou com a desigualdade social e se tornou símbolo no combate à fome, criando a campanha mais bem-sucedida da história sobre esse tema.

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