Comportamento

Agradar a todo mundo: a opressão das atitudes passivas

Medo da rejeição é uma das razões para que muitas pessoas estejam sempre tentando agradar às outras


Publicado em 30 de março de 2022 | 08:00
 
 
 
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“Recentemente, experimentei dizer exatamente esta frase para uma pessoa que me fez um pedido: ‘Não, porque eu não quero’. Sem desculpas, sem explicações, sem mentiras. Eu me senti voando de tão leve. E, quando percebi que a pessoa prontamente compreendeu e aceitou, me senti exausta por todos os anos que não tive coragem de agir para estabelecer os limites necessários para que a vida se tornasse mais leve”. É assim que a pesquisadora Morena Mariah, criadora da plataforma de educação Afrofuturo, descreve a sensação de ter ousado se posicionar e contrariar as expectativas que imaginava que estavam depositadas sobre si mesma. Ela prossegue revelando que, por muito tempo, mentiu para as pessoas com quem se relacionava de forma quase compulsiva. “Inventava compromissos, me enrolava nas desculpas toda vez que não queria fazer algo que me era solicitado. Não sabia como estabelecer os limites, nem por onde começar a aprender. Meu maior medo era não me sentir amada, perder o afeto das pessoas ao meu redor”, confessa. 

O relato de Morena, publicado no artigo “O poder libertador do ‘Eu não quero’”, no jornal “O Globo”, ilustra como, para algumas pessoas, fazer valer a própria vontade é uma tarefa difícil, embora também se revele uma atitude emancipatória.  

“Há indivíduos que realmente dependem muito da aprovação alheia para se sentirem bem consigo e, por isso, têm mais dificuldade de contrariar os outros”, reconhece a psicóloga Telma Cunha, que integra a equipe do Núcleo de Psicologia Seu Lugar. Ela pondera, contudo, que é ilusório cogitar a possibilidade de, simultaneamente, agradar a todos o tempo todo. Nesse caso, acerta o dito popular que assevera: “Nem Jesus, o Filho de Deus, agradou a todo mundo”. O que dizer, então, de nós, humanos, demasiadamente humanos? 

Talvez, aliás, seja justamente por uma característica humana que contrariar os outros torna-se uma tarefa tão difícil. Na avaliação da psicóloga, o desejo de se sentir acolhido e de evitar situações em que se possa ser rejeitado é uma característica evolutiva da nossa espécie, que, para sobreviver, logo entendeu que se sairia melhor se organizando em grupo. Portanto, em certa medida, o receio de frustrar as expectativas de alguém é algo normal e até esperado. 

Nesse sentido, a psicóloga clínica e ambiental Renata Carvalho cita que, em algumas situações, uma postura mais passiva pode ser estratégica, permitindo que se passe por adversidades sem maiores atritos. Mas, quando essa postura torna-se regra, “esse aparente viés pacífico passa a esconder uma grande violência dirigida contra a própria pessoa, à medida que ela cada vez mais se anula, e contra o outro, pois, ao não se posicionar, ela pode favorecer a perpetuação da opressão”, analisa. 

Alto custo 

E o preço de ceder demais pode ser alto. Rodrigo Tavares Mendonça, psicoterapeuta de casais e de família, alerta que a atitude aparentemente altruísta de se curvar aos desejos dos outros, sem oferecer barreiras, pode camuflar uma série de expectativas. Essas pessoas podem, no fundo, esperar uma retribuição ou, pelo menos, um reconhecimento por serem tão generosas. Contudo, se esses gestos não são notados, o resultado pode ser uma futura explosão de irritabilidade. 

“É como se o sujeito fosse acumulando em um pote todas as vezes em que cedeu, até que o pote entorna. A partir desse momento, pequenas frustrações com o outro se tornam a gota d’água para uma torrente de histórias malresolvidas que acabaram sendo contingenciadas”, avalia o profissional, sublinhando que a consequência, evidentemente, é a deterioração das relações sociais, afetivas e laborais. 

Mesmo que esse ataque de fúria não chegue a acontecer, como no caso de indivíduos que evitam a indisposição a todo custo, outras diversas consequências nocivas da tentativa de agradar a todos podem ser percebidas. Telma Cunha cita que esse grupo está mais vulnerável a se engajar em relações abusivas e desenvolver quadros de dependência afetiva. “São pessoas que acabam atraindo parcerias muito controladoras”, alerta. Quadros de angústia também são comuns. “Esses sujeitos não conseguem se realizar porque estão o tempo todo se anulando. Por isso, ficam angustiados e ansiosos”, sinaliza. 

Raiz do problema 

A origem do problema pode estar ligada a uma autoestima baixa e à história de vida. “Quando pegamos o caso de um paciente com essas características, notamos que, principalmente nas fases iniciais, há relatos de uma educação muito rígida e coercitiva, com constante reprovação dos pais diante de posicionamentos e de opiniões daquela criança. Geralmente, esse adulto passou por uma infância em que não tinha o direito de se manifestar e de expressar o que sentia. Então, ao crescer, esse padrão disfuncional de comportamento, que sempre busca aprovação, acaba sendo reproduzido”, analisa Telma Cunha. 

Renata Carvalho concorda. “Atendo muitos casos em que os pacientes se sentem inadequados, pensam que serão rejeitados. Algumas pessoas ficam presas ao rótulo de ‘boazinhas’, de maneira que, ao falar ‘não’, acabam se vendo em situação de constrangimento, pois aquela resposta não era esperada”, afirma, completando que, em algumas situações, é preciso fazer um trabalho para que a pessoa se entenda como protagonista da própria história e perceba que tem direito de também se posicionar e tomar decisões com independência.  

Questão de gênero. A experiência de anulação da própria vontade e identidade visando à satisfação do outro é mais comum entre pacientes mulheres, o que pode ser explicado com base na compreensão das estruturas culturais patriarcais. “É algo que está muito ligado ao apelo cultural do que se espera das mulheres, muitas delas educadas para servir ao outro, para estar em função do outro, que sempre esteja disponível, submissa e que tenha compaixão”, analisa Telma. Para ela, o não de uma mulher muitas vezes é interpretado como uma atitude de insubordinação ou simplesmente ignorado. 

Tratamento 

Telma Cunha reforça que muitos indivíduos que adotam reiteradamente atitudes passivas e cedem excessivamente às vontades dos outros podem não perceber que estão reproduzindo um padrão disfuncional de comportamento. Isso porque, socialmente, eles podem ser bem-vistos, sendo lidos como generosos, prestativos e agradáveis. Porém, ela alerta que essas pessoas precisam de auxílio psicoterápico para romper com crenças limitantes sobre a própria identidade. “Elas precisam trabalhar a autoestima para que se sintam livres para serem quem são. Para isso, é preciso atravessar um processo de reconstrução e reconexão com si mesmo. Só assim será possível se inserir em relações autênticas, sem se anular para agradar aos demais”, salienta.

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