Um termo surgido nas comunidades poliamorosas de São Francisco, nos Estados Unidos, na década de 1990, voltou a provocar buchicho nas redes sociais nos últimos dias. Embora não possua tradução oficial nos dicionários de língua portuguesa, o uso corrente, ao menos em alguns grupos específicos, notadamente aqueles que privilegiam relações não-monogâmicas, acabou incorporando a “compersão” ao vocabulário de muitos brasileiros.
Trata-se de uma reversão de expectativa em relação ao que seria o tipo de sentimento mais difundido em um contexto amoroso de acordo com o senso comum. Ao invés de ciúme, a compersão é justamente o sentimento de felicidade ao ver a pessoa que se ama, admira ou por quem se nutre desejo com outra.
A psicóloga Marcelle Primo explica que a compersão “é uma habilidade que está mais para o campo de aprendizados do que os campos de características inatas da espécie humana”. “Evolutivamente, sentir alegria ao ver o parceiro se relacionar afetiva e sexualmente com outro(s) não tem muitas descrições em formação de agrupamentos ao longo da história. Muito pelo contrário, as histórias mais relevantes têm a ver com o sentimento de ciúmes e inveja, o que envolve a noção de cerceamento, reconhecimento de autoridade e hierarquias”, pondera. Todavia, a capacidade humana de moldar o próprio destino e de se transformar ao longo do tempo estaria na base desse sentimento um tanto inusitado para grande parte das pessoas – senão a maioria.
“Os fatores psicológicos que permitem que alguém sinta compersão em vez de ciúme são autoconhecimento, alta autoestima, autoconfiança, algum grau de inteligência emocional, comportamentos e ações que visem a liberdade pessoal, altruísmo, visão não competitiva das relações e também o desejo”, enumera Marcelle. A especialista também esclarece que um sentimento não elimina automaticamente o outro, podendo haver, inclusive, uma insólita convivência.
“Compersão e ciúmes são reações possíveis de ocorrerem ao mesmo tempo. Ao ver alguém que amamos sendo feliz, isso pode nos causar euforia e também o medo de se sentir inferior, inseguro, sermos deixados de fora dessa felicidade e nos trazer angústia e mal-estar por fazer com que um sentimento de preterimento seja revivido”, avalia, sublinhando a complexidade humana.
Limites da liberdade
Há quem acredite que o sentimento de compersão só se realizaria plenamente em uma relação aberta, mas Marcelle coloca mais uma pimenta nesse tempero. Afinal de contas, não existem regras para se estabelecer a dinâmica de uma relação, cabendo sempre àqueles que estão diretamente envolvidos nela a definição desses parâmetros. Se cada pessoa é uma, cada relação também pode ser.
Nesse sentido, mesmo a conhecida “relação fechada” possibilitaria esse sentimento. “A compersão em relações não monogâmicas é o pilar que possibilita menos estresse, cobranças e abertura ao diálogo não violento. O princípio da compersão é a alegria e uma outra via para o afeto nas relações amorosas poliamoristas”, inicia a psicóloga.
“Em relações monogâmicas, a compersão pode levar a maior satisfação pessoal ao passo que o outro não dependa tanto de você e também para que os términos não criem laços traumáticos e sabotagens por parte de quem fica e de quem vai. É comum que seres humanos busquem se parear. Os dois seres relacionantes não são únicos e exclusivos de uma vida inteira. Podem ser, mas não é um regime previsto como exclusividade para todos. Quando algo acaba, você e o outro procurarão por outras pessoas, novas relações acontecerão e não há nada de errado nisso. A compersão nessas condições traz menos sofrimento, pois ao ver quem já esteve com você com outro(a), você não será tomado de um sentimento de arraso”, complementa.
O fundamental, em qualquer um dos casos, seria compreender que mesmo a liberdade pressupõe limites, numa via de mão dupla em que uma não existe sem a outra. “Comunicação e limite é importante para qualquer regimento de relações, sejam amorosas ou profissionais. Ter um canal de comunicação honesto, em relações não monogâmicas, é o que possibilita o aparo de arestas e do apossamento do próprio desejo com o outro. Discute-se mais o que pode e não só o que não pode”, confirma Marcelle.
Outra possibilidade intrigante seria a compersão “existir e não ser executada”. “Por exemplo, gosto de ver você sendo feliz com outras pessoas, mas não quero saber ou viver o mesmo. Ou pode ser vivida com abertura para ambos que sintam a compersão e queiram viver e partilhar suas experiências sobre isso”, conta a psicóloga.
Caminhos possíveis
Marcelle esclarece que não existe uma linha terapêutica que transforme o ciúmes necessariamente em compersão, carregando a pessoa de um pólo a outro. “Nem toda terapia que vise tratar o ciúme levará à compersão. É bem provável que fiquemos na prática de elasticidade dos aspectos íntimos de como lidar consigo ao se relacionar com o outro”, pontua.
Ela reforça que a compersão é “um termo novo, distante do vocabulário de pessoas monogâmicas”. “Desenvolver a compersão não é algo comum, ainda é algo restrito a alguns grupos. Para aqueles que procuram um processo de desenvolvimento de compersão, creio que haverá bastante trabalho em torno de medos, aceitação, empatia, noções de poli-intimidade e polifidelidade e abertura a novas experiências”, arremata.
Influência da personalidade
Diante de tantas questões colocadas, a dúvida que fica para muitas pessoas é se existem aquelas cuja personalidade tende com mais força para a compersão. Ou seja, se a pessoa possui um comportamento mais possessivo, egoísta, em contraponto a alguém desapegado, provavelmente ela terá mais dificuldades em sentir compersão. “A compersão possui ligação direta com algumas características de personalidade, sim, mas isso não implica que só haverá compersão em tais condições”, observa a psicóloga Marcelle Primo.
“Quem tem características altruístas faz auto-sacrifícios num piscar de olhos, uma pessoa com um ego mais dominante não realiza tantos sacrifícios, é atípico, quase um ataque ao modo de funcionamento de quem é assim. Os empáticos podem ser mais doces e conseguirem se colocar no lugar do outro e nem por isso agirão com harmonia ao ver o par se relacionando com outro, inclusive, isso pode gerar um estado de paranóia, já que ficarão se perguntando se não estão sendo insuficientes para o outro”, detalha a especialista.
Ainda haveria aquelas pessoas “que se sentem inferiorizadas em relação a outras”. “Essas pessoas podem ter maiores chances de sentirem compersão. Mas daí eu pergunto. É saudável sentir compersão nessa situação? A compersão quando balizada na patologia da vida cotidiana traz muito mais complexidade que só um estilo de vida”, finaliza.