“Oun”. A interjeição mais emitida diante de fotos fofas de animais ganha entonações mais enfáticas quando a imagem em questão flagra uma fêmea de determinada espécie fazendo as vezes de mãe de um filhote de outra. Os exemplos pipocam: um dos mais recentes é o de Pusha, gata de Bakhchisaray, na Crimeia, que adotou quatro filhotes de esquilos – com direito a amamentação, já que havia parido recentemente. Basta digitar o nome da felina em sites de pesquisa e, pronto, várias fotos ou vídeos aparecem. Mas não é preciso ir à costa do mar Negro para encontrar exemplos.
Professora na Escola de Veterinária da UFMG, Christina Malm sempre costuma mostrar aos alunos o livro “Amizades Improváveis”, que flagra histórias comoventes de adoção interespécies – inclusive das que comumente mantêm entre si uma relação de presa e predador.
O fenômeno, prossegue ela, alinha-se ao conceito de senciência, que pode ser resumido à capacidade dos seres de sentir sensações e sentimentos, sendo aplicável não só aos humanos. “Os animais não são racionais, mas têm sensações e percepções. A partir daí, a gente consegue entender alguns comportamentos”, complementa ela.
Gipsy, a gata resgatada pela Associação de Proteção e Bem-Estar Animal de Governador Valadares, a Aprobem-GV, que aparece na foto abaixo, é um exemplo. “Ela foi abandonada numa caixa pequena, com um lençol e seis filhotes, três já mortos”, descreve a voluntária Danielle Barroso e Oliveira. “Acreditamos que tenha sido abandonada parindo e, com o movimento, talvez tenha esmagado os três”.
No lar temporário dado por Danielle, os filhotes cresceram e, como de praxe, foram colocados para adoção. “Ao voltar de um evento no qual dois deles foram adotados, a Gipsy partiu para procurá-los casa afora. Cheirava tudo, morri de dó”, confessa ela.
A reação se repetiu quando o outro filhotinho finalmente ganhou o seu lar. “Só que, no mesmo dia, recebi um telefonema avisando sobre o abandono de cinco gatinhos amarelos numa caixa”. Danielle acabou acolhendo os “ruivinhos”. “No dia, a Gypsy estranhou, e, por isso, deixei-os no meu quarto. Mas no dia seguinte, ao deixá-la passear pela casa (sob vigilância), ela foi até eles e começou a cheirá-los. Deu uma lambidinha em um e, de repente, se deitou e deixou todos mamarem”. Na verdade, o leite de Gipsy já havia secado, mas, com o contato com os novos filhotes, voltou.
No entanto, em quantidade insuficiente para alimentar todos a contento, motivo pelo qual Danielle seguiu dando leite na seringa como complemento. A prole aumentou com Shuri, frajolinha (preto e branco) também resgatada. “E ela adotou todos os seis”, lembra. Quatro ruivinhos e Shuri já foram adotados. A novidade é que Gipsy, agora castrada, também vai ganhar em breve o seu lar definitivo.
Ninhada perdida, ninhada adotada
Recolhida pela ONG BastAdotar, que atua em Belo Horizonte, Melissa é uma charmosa gata tricolor (pelagem na cor branca, cinza e creme). “Uma tricolor sutil”, brinca a protetora Mirian Chrystus. E também uma felina com uma bela história para contar. “Melissa estava grávida quando foi abandonada. Resgatada, numa noite iniciou o trabalho de parto, mas acabou perdendo toda a ninhada: ao todo, oito gatinhos”, relembra a jornalista e ativista.
Triste, Melissa ficou andando pela casa, procurando os filhotes perdidos. “Cerca de uma semana depois, duas ninhadas distintas, somando, por coincidência, oito gatinhos, perderam suas mães, vítimas de violência. Alguns dos filhotes não tinham sequer uma semana de vida”, conta Mirian.
A BastAdotar, que mais uma vez resgatou os felinos, testou uma aproximação cuidadosa. E, para felicidade geral, Melissa acolheu os pequetitos carinhosamente. Mas, em dois meses aproximadamente, quase todos morreram. “Restaram apenas dois, que hoje, lindos, já estão adultos e vivem com ela: Laranjinha, uma gatinha amarela, e Veludo, um gatinho preto de pelos longos. Os três são muito ligados. Não tive coragem de separar a família”, confessa Mirian.
“Animais não são máquinas”, lembra veterinária da UFMG
A veterinária e professora da UFMG Christina Malm ressalta que comportamentos como os apresentados por alguns dos animais citados na reportagem nem sempre serão replicados por todos da mesma espécie. “Animais não são máquinas. São seres movidos por sensações e experiências. Portanto, a gente detecta comportamentos que agregam, de aconchego, de proteção; mas, em outros casos, justamente o contrário”, enfatiza.
Instada a falar sobre casos em que mães do reino animal matam os próprios filhotes, ela esclarece que, a priori, são situações fora da naturalidade. “Muitas vezes, acontecem no caso de um filhote mais fraco da ninhada, como por exemplo, um que não consegue mamar, como se fosse a própria natureza atuando ali, numa espécie de seleção”, diz. Já casos de fêmeas que matam toda a ninhada podem ocorrer em situações nas quais elas estão muito estressadas ou assustadas, algumas vezes por estarem em ambientes estranhos – mas também são episódios fora da normalidade no reino animal. “E quando falo isso, percebo que também estamos tratando muito do emocional, mais uma vez dentro do conceito da senciência”, frisa.
Existem, ainda, casos nos quais a fêmea apresenta a chamada “gravidez psicológica”, ou “pseudogestação”, relativamente comum em cadelas”. Assim, mesmo o animal não estando prenhe, suas glândulas mamárias passam a produzir leite, o que permite que possa até amamentar filhotes de outra fêmea – inclusive de outra espécie. “Muitos de nós já ouviram casos ocorridos em uma fazenda, por exemplo, de cadelas amamentando outros animais”.
Com uma fêmea nessa situação, vale procurar aconselhamento médico, visto que a produção de leite pode desencadear um processo inflamatório da mama ou mesmo apedramento. “Existem medicamentos orais para interromper esse processo. É importante, também, castrá-la após o primeiro cio, pois esse comportamento, que não é desejado, pode se repetir ao longo da vida”, avisa.
Casos notórios
Koko. Falecida ano passado, a gorila nascida no zoológico de São Francisco (EUA), ficou famosa por poder se comunicar com humanos por meio da Língua de Sinais Americana. No curso de sua vida, cuidou de vários gatos, sendo que o primeiro foi “pedido” por ela aos cientistas.
Faísca. Há alguns anos, no interior do Paraná, a cadelinha Faísca virou celebridade local por, mesmo sem até então ter tido cria, ter produzido leite para dois filhotes de tatu órfãos.
Gambás. Há três anos, no Rio de Janeiro, foi a vez de a cadela Pretinha ganhar seus minutos de glória ao adotar gambás cuja mãe havia sido atropelada. Um caso bem similar ocorreu ano passado na Carolina do Sul (EUA).