James Duffy, um caixa de um banco solteirão mora sozinho no subúrbio de Dublin, na Irlanda, na primeira década dos século 20. Amante de Mozart, seu único prazer é ir à salas de concertos para assistir suas óperas preferidas. Certa noite ele conhece Emily Sinico, a esposa solitária de um capitão naval que sente-se negligenciada pelo marido.

Não demora muito e os dois tornam-se amigos íntimos e passam a encontra-se com frequência às escondidas. Um dia, enquanto conversavam sobre a solidão, Emily segura a mão de Duffy, e apaixonadamente, a leva ao peito. Surpreso, ele recua temendo que uma paixão venha pôr fim à profunda amizade entre eles.

Quatro anos se passam sem que Duffy tenha notícias de Emily, até que um dia, ao folhear um jornal, ele descobre que ela morreu atropelada por um trem. A notícia o faz refletir sobre a chance que desperdiçou de poder ter dado vida à seus desejos com a finada amiga.

A história retratada no conto "Um Caso Doloroso", que faz parte da obra-prima "Dubliners", do escritor irlandês James Joyce (1882-1941), traz à tona a eterna e irrespondível questão sobre relacionamentos humanos: será que sexo e amizade combinam?

Segundo a ciência, a resposta é um ressonante sim. Um estudo publicado no jornal Archives of Sexual Behavior em 2017 concluiu que amigos que se aventuram em relações românticas-sexuais tendem a sentirem-se mais conectados e íntimos dos seus 'camaradas de transa'.

Os experimentos envolveram 171 estudantes universitários norte-americanos, sendo 118 mulheres, 52 homens e uma pessoa que não revelou identidade de gênero. Todos os participantes afirmaram ter feito sexo casual com algum amigo ou amiga pelo menos uma vez naquele ano.

"Quando acontece entre pessoas emocionalmente maduras e seguras de si, a relação sexual pode sim ser uma vantagem. A chamada 'amizade colorida' parte do princípio de que dois indivíduos vão ter uma intimidade, confiança e liberdade sem a necessidade de exclusividade. Ela não carrega o peso do compromisso de uma relação fechada, na qual há cobranças, ciúmes e possessividade", observa a sexóloga e terapeuta sexual Fernanda Viana.

A psicóloga Yaska Alessandra de Paula Sousa alerta ainda que esse tipo de contato físico e íntimo às vezes traz uma carga emocional grande, e que por isso, pode não funcionar para todo mundo.

"O sexo tem um significado específico para cada pessoa. Tem quem o encara como um veículo de satisfação, assim como aqueles que o enxergam com um compromisso, algo romântico. Obviamente, essas duas visões não fazem sentido para amigos com percepções diferentes", avalia a especialista.

Fernanda Viana concorda: "Muita gente ainda está apegada ao ideal de amor romântico, à ideia de fusão, uma só carne, e do 'até que morte os separe'... Por isso, nem todas as pessoas estão prontas para uma redação onde há tanta liberdade", complementa.

Sendo assim, como agir então se um dos dois se apaixonar? É possível seguir adiante com a amizade?

"É preciso que haja clareza sobre o que ambos estejam sentindo, e que se entenda quando o sentimento não for recíproco. O ideal é que esses amigos não continuem a se relacionar sexualmente, já que a amizade pode ficar estremecida", indica Yaska Sousa.

Nesses casos, alinhar as expectativas pode ser um ponto-chave, aponta o fisioterapeuta pélvico, terapeuta sexual e mestre e doutorando pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Gianluca L. M. Leme.

"Como em qualquer outro relacionamento humano, o principal é estar sempre aberto ao diálogo. Porém, é muito importante definir prioridades e os 'acordos' que envolvem esse tipo de amizade colorida, como se vai envolver sexo todos os dias ou somente nos fins de semana; se o sexo vai continuar após um deles encontrar outros pares, e, principalmente, se eles ainda vão sair como amigos após o envolvimento", sugere o terapeuta.

Efeitos sociais

Apesar do mundo estar cada vez mais abertos a novos tipos de relacionamentos, ainda é possível que "amigos coloridos" sofram algum tipo de discriminação social.

Yaska Sousa explica como lidar com esse problema: "Estejam cientes que para algumas pessoas essa dinâmica de relação é algo que causa estranheza. Deixem claro para todos que vocês concordam e estão alinhados sobre seu relacionamento, e que se houvesse problema, seria algo discutido entre vocês. Lembrem as pessoas que elas devem respeitar todas as escolhas e formas de relações que existem", aconselha ela.

A sexóloga Fernanda Viana lembra ainda que a intimidade e a privacidade são direitos constitucionais invioláveis.

"Tudo que foge ao padrão monogâmico e heteronormativo é visto com estranheza, ainda mais numa sociedade conservadora. Para lidar com a discriminação é importante ter segurança em si mesmo e se cercar de pessoas que pensam como você. Construa relações saudáveis e não se incomode se alguém se afastar", recomenda.

A psicóloga Yaska Sousa aproveita para deixar conselhos para quem deseja misturar sexo e amizade sem conflitos.

"Continuem sendo amigos e não priorizem somente o sexo. Assim sua relação será sempre saudável e confortável para ambos, e, o mais importante, livre de sofrimentos e brigas", ensina Yaska.

"Não deixem de fazer programas separados, falem sobre seus sentimentos caso aconteça de se apaixonarem, e protejam-se sexualmente. Por fim,  estejam sempre alinhados e prontos para lidar com as expectativas de fora. Não esqueçam que a amizade é uma mistura de parceria, comunicação e reciprocidade. Portanto, encarem tudo sempre de forma leve e divertida", conclui.