O servidor público Heitor Pinheiro, de 44 anos, lembra-se do caso. Ao pronunciar uma palavra erroneamente ele teria tentado se corrigir e incorrido em um erro ainda mais crasso. Repetida aos quatro ventos por outras pessoas, a fofoca tomou tamanho vulto que confundiu inclusive o personagem.
“No começo achava que isso não tinha acontecido, que, ao me corrigir, eu não teria dito outra palavra errada, mas hoje já não tenho certeza”, confessa ele, que atribui a proporção da fofoca ao fato de as pessoas irem incrementando o relato, seguindo a célebre máxima do “eu aumento, mas não invento”. A pedagoga Sarita Leite, de 54 anos, afiança essa perspectiva fofoqueira.
“Quem conta aumenta um ponto, até para dar um sabor à história, para gerar um suspense, um tempero. A fofoca sempre nos ronda”, diz. Sarita especula que gasta cerca de cinco horas por dia com fofocas, e estabelece alguns critérios. “No WhatsApp a fofoca tem que ser no privado, nunca no grupo. Dá uma coceira no corpo para saber quando tem uma fofoca à vista. A fofoca nunca é do bem, se não tiver esse leva e traz, esse cutuca daqui e de lá, não tem graça. Eu sei que todos eles falam de mim, então eu não vou refrescar para ninguém”, assegura.
Nala Oliveira, de 18 anos, estudante, segue uma linha parecida: “Eu sei que falam de mim, por isso que falo o dobro, estou só retribuindo”, diverte-se. Para a psicóloga Anna Júlia, de 24 anos, “fofocar é bom olhando para a cara da pessoa”. Ela dispensa os aplicativos virtuais e costuma reservar cerca de duas horas do seu dia para a atividade. “Sou muito fiel aos fatos e às fontes quando faço uma fofoca. Conto que vi no TikTok, e, dependendo da pessoa com quem estou fofocando, coloco ali uma crítica sobre aquilo, um tempero, umas pontuadas em assuntos importantes”, detalha.
A historiadora Laura Nunes, de 27 anos, prefere “ouvir a fofoca”. “Nunca repasso”, posiciona-se. A discrição garante confidências preciosas, sobretudo porque ela respeita a hesitação do fofoqueiro. “Fico curiosa, mas prefiro não ficar cobrando a outra pessoa quando ela desiste da fofoca”, confirma Laura.
“Sempre trabalhando”, o autônomo Rodrigo Alves, de 20 anos, vive “sem tempo para fofoca”. Já a situação do vendedor ambulante Alex da Silva, de 23 anos, é diversa, embora semelhante. “Não tenho com quem fofocar”, diz. Ademais, ele considera que “tem fofoca que nem é bom você escutar”. “Família é um lugar bom para fofocar, porque o que acontece ali não sai dali”, acredita Alex. Bem, como diria o outro, há controvérsias.
Demasiado humano
Fato é que a fofoca é “um comportamento humano universal”, como pontua a psicóloga Keila Calil. “Ela fortalece a coesão de grupo e regula comportamentos. Estudos mostram que nosso cérebro recompensa a fofoca com uma sensação de poder e pertencimento. Há também estudos que mostram que entre familiares, grupos e no trabalho os principais motivos são validar informações, proteger o grupo, desabafar emoções desagradáveis e até, em menor escala, influenciar negativamente. Ou seja, mesmo quando parece trivial, a fofoca carrega um senso de estratégia social”, aponta.
Keila lança mão de duas teorias que procuram explicar a função evolutiva da fofoca na nossa sociedade, a Teoria da Reciprocidade Direta, em que, “ao divulgar o comportamento cooperativo ou oportunista de alguém, o fofoqueiro promove uma rede de obrigações e sanções, incentivando a cooperação em larga escala”, e a Teoria da Escolha de Parceiros com Base na Reputação, na qual os “indivíduos usam a fofoca para selecionar parceiros, seja de trabalho, amizade ou romance, que tenham boa reputação, favorecendo aqueles com relatos positivos e evitando os negativos”, discorre.
A especialista procura diferenciar uma fofoca positiva da negativa. “A fofoca ‘boa’ relata ações generosas ou colaborativas, como de alguém que doou parte do salário, reforçando a confiança e atraindo apoios futuros. Já a ‘ruim’ destaca falhas, traições ou comportamentos antiéticos, servindo como sinal de alerta e punição de reputação”, compara.
“Em ambos os casos, estudos de neuroimagem mostram ativação do sistema de recompensa onde há liberação de dopamina, independentemente do tipo de fofoca. Contudo, fofocas positivas tendem a gerar sensação imediata de bem-estar e motivação pró-social, enquanto fofocas negativas podem ativar também circuitos de vigilância e aversão, reforçando normas e sentimentos de justiça”, complementa Keila.
Recompensa
Nesse sentido, a psicóloga ressalta que, “quando compartilhamos informações boas ou ruins sobre terceiros recebemos de volta olhares de concordância, risadas, comentários de apoio que ativam o mesmo circuito de recompensa social ligado ao pertencimento”. “O indivíduo busca a confirmação de seus próprios julgamentos e sente a autoestima reforçada ao obter aprovação do grupo. Pesquisas indicam que a exposição a fofocas percebidas como verdadeiras eleva a autoavaliação e a sensação de pertencimento, criando um ciclo de busca por mais validação social”, destaca.
Por outro lado, “quando a fofoca vira a principal fonte de valor pessoal, ela deixa de ser um meio de conexão e se transforma num atalho emocional, um jeito rápido de sentir importância, sem se apoiar no autoconhecimento”. “É como inflar a autoestima com o ‘ar dos outros’, ou seja, alivia na hora, mas não se sustenta a longo prazo”, alerta Keila, para quem a “motivação da fofoca” é preponderante. “Se eu falo sobre alguém para me proteger, me integrar ou para crescer junto é diferente de quando falo para me sentir melhor diminuindo o outro”, afirma.
Segundo ela, uma das motivações mais comuns para a fofoca é o “desabafo emocional”. “Falar dos outros às vezes é um jeito de não olhar para dentro. A fofoca, nesse caso, funciona como distração emocional, adia decisões, evita confrontos internos e nos desvia do essencial”. Logo, é preciso estar atento a essas recorrências.
“Se a pessoa se sente melhor apenas quando fala de outros, se as relações giram em torno de terceiros e não de ideias ou propósitos, se o ambiente já está polarizado com desconfiança e fragilidade dos laços, nada melhor do que o bom e velho bom senso para sinalizar que aquela conversa é desnecessária. Se a fofoca vira a principal forma de se conectar, talvez seja hora de investigar o que está por trás desse hábito”, orienta a psicóloga.
Estratégias de escape
Quem deseja escapar a um ciclo de fofocas que se tornou viciante pode ter a psicologia como grande aliada. Keila Calil, neurocientista do comportamento e psicóloga, indica a prática de atenção plena, “quando trocamos o julgamento pela presença”. “Tome consciência do que está acontecendo dentro de você, escolha deliberadamente mudar o foco ou a resposta, ao invés de seguir no piloto automático. Com a repetição dessa escolha consciente, o cérebro cria novos caminhos neurais, fortalecendo comportamentos mais saudáveis e intencionais”, sustenta a especialista.
Ela percebe que as redes sociais e a vida contemporânea altamente conectada têm contribuído negativamente para esse cenário em que as pessoas se tornam cada vez mais reféns da fofoca. “As plataformas aceleram tudo. O acesso, o alcance e a recompensa. Cada curtida ou comentário ativa o cérebro como uma mini-validação social. Com isso, falar dos outros mesmo sem intenção vira uma forma de ganhar atenção rápida. Mas atenção não é conexão. O excesso de exposição digital aumenta a comparação social, e, com isto, o impulso de falar dos outros como válvula de escape”, arremata.