Sociedade

Com quantas pautas se faz o ‘BBB’?

Reality da Globo trouxe, neste ano, temas como racismo e relacionamento tóxico que repercutiram do lado de fora da casa


Publicado em 10 de maio de 2021 | 03:00
 
 
 
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Na 21ª edição do “Big Brother Brasil”, a mais longa de toda história do reality e que chegou ao fim no último dia 4, foram muitas as discussões que se iniciaram na casa e que reverberaram para muito além dela. Cancelamento, racismo, LBGTfobia, relações tóxicas, capacitismo e manipulação foram alguns dos temas debatidos e que, ao se infiltrarem em milhões de lares Brasil afora, ganharam novas camadas e foram se constituindo coletivamente. 

E, dessa vez, a própria Globo, responsável pela atração, parece ter compreendido a necessidade de encarar as discussões que emergiram durante esses cem dias de “BBB”. Trata-se de uma significativa mudança de postura, que contraria opiniões expressas há dez anos pelo diretor José Bonifácio de Oliveira, o Boninho. À época, ele havia classificado o programa como apenas um “jogo cruel”, rechaçando que aquele fosse um espaço apropriado para o debate de pautas sociais. Atual apresentador do formato, Tiago Leifert também já criticou participantes por levantarem bandeiras – em 2018, por exemplo, fez um duro discurso de eliminação direcionado a sister Nayara, que se percebia como representante da comunidade negra. 

Mas, ainda que tentasse “fugir de seus ‘BOs’” – para usar uma expressão muito comum no próprio reality –, a verdade é que o “BBB”, desde as primeiras edições, se mostrou um eficiente meio para a popularização das mais variadas causas. “Felizmente, desde 2020, os debates têm sido incorporados na construção narrativa e na abordagem do apresentador junto ao público”, observa Pablo Moreno Fernandes Viana, doutor em comunicação e professor de comunicação social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele avalia que, se comparada a abordagem de anos anteriores, a produção do “BBB” tratou os temas que foram aparecendo na casa, neste 2021, de uma maneira mais interessante e interessada. “E creio que, em edições futuras, será impossível escapar desses debates, visto que a sociedade aceitou participar desse processo de discussão e enfrentamento dessas opressões, dentro daquilo que chamamos de desconstrução”, opina.

Armadilhas e potenciais distorções dificultam debate 

Também pesquisadora da comunicação, Sophia Mendonça lembra que, por ser um programa de entretenimento com grande repercussão, tanto em termos de audiência na televisão quanto nessa ampliação por outras mídias, o “BBB” tem papel importante ao levantar debates que ajudam na construção da memória da sociedade, sobretudo em relação a assuntos com os quais muitas pessoas não têm contato sem ser pela representação midiática. “Não se trata de um processo de causa e efeito, porque são diversos os fatores que constroem essa memória, mas, a partir do momento em que uma figura pública personifica essas características e essas informações vão sendo difundidas, esses exemplos das mídias se tornam emblemáticos”, pontua.  

Mas o formato tem também suas armadilhas e, assim como possibilita um diálogo quase nacional sobre as mais diversas pautas, pode provocar distorções. “Tem toda a questão emocional e afetiva. Nós nos envolvemos com os participantes do reality e, com isso, nos envolvemos muito mais com temas que afetam aquelas pessoas. Isso pode ser perigoso por reproduzir e legitimar estereótipos ou vivências que são muito particulares, como aconteceu, inclusive, com um participante assexual da 20ª edição do programa”, sinaliza a pesquisadora, referindo-se ao psicólogo Victor Hugo.

Nesta edição, Sophia, que é autista e ativista pelas causas das pessoas neurodivergentes, reconheceu na participação do ator Fiuk uma oportunidade para debater o capacitismo e o preconceito contra pessoas neuroatípicas. Isso porque, ainda nos primeiros dias no “BBB”, o artista admitiu ter o diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). “Ele foi muito julgado por suas características, mas também foi motivo de identificação para muita gente com TDAH. As atitudes que ele tinha, muitas vezes criticadas, não eram por mau comportamento ou escolha. Vejo a participação dele como algo que favoreceu a conscientização em relação ao assunto”, diz. 

A dor representada 

Assim como Sophia Mendonça, ano após ano, um mar de gente se vê representada pelos participantes do reality. E, em alguns momentos, esse espelhamento pode ter um quê de dor. Foi o que ocorreu quando o ator Lucas Penteado vivenciou um episódio de bifobia após protagonizar o primeiro beijo entre dois homens já visto no reality. “Acordei e vi uma manchete que dizia que o Lucas havia beijado o Gilberto, se assumido bissexual e saído da casa. Me senti tensa de imediato, certa de que a bifobia havia se manifestado e que isso tinha sido um fator muito importante para a desistência do participante. E foi bem isso”, lembra Nanda Rossi, integrante da Frente Bissexual Brasileira. 

“A discussão que se deu depois, lá dentro e aqui fora, são elementos que podem ter ajudado as pessoas a entender melhor, um pouco que seja, essa orientação afetiva-sexual. Essa é a importância da crítica, do comentário sobre aquilo a que assistimos coletivamente”, pontua a mestre em comunicação. Para ela, a mídia ajuda a compor o que pensamos sobre as pessoas e sobre os grupos. Nesse sentido, o apoio a Lucas foi fundamental, funcionando como um contraponto positivo à avalanche negativa após o acontecimento que se viu na casa. “Dessa forma, comentando, dizendo o que vimos de errado, apoiando Lucas em sua manifestação e declaração, podemos começar a criar um território de disputa de significados sobre a bissexualidade. E um dia podemos vencer esse ódio”, garante. 

Já a psicóloga e psicanalista Cristiane Ribeiro, mestre em saúde e prevenção da violência, diz ter sido desafiador acompanhar os episódios de racismo e de machismo cotidianos e as discussões suscitadas a partir deles. “A liberdade de expressão e a violência explícita têm linhas bastante tênues, como estamos acompanhando nos diversos cenários brasileiros”, comenta, acrescentando que a amplificação, possibilitada pelo “BBB”, não significa, necessariamente, a qualificação dos debates que acontecem a partir de eventos ocorridos no programa. “O que só torna mais desafiador realizar essa discussão em meio a tantas estratégias que têm como único objetivo fazer a manutenção do status quo e justificar o lugar social ocupado por pessoas negras na sociedade brasileira”, argumenta a integrante da Nzinga - Coletivo de Mulheres de Belo Horizonte.  

Para ela, o possível legado deixado pelo “BBB” para o debate de pautas sociais tende a ser dúbio. “Se, de um lado, pudemos construir uma ação de fortalecimento do discurso negro com o rechaço à discriminação do black power, com direito à manifestações de celebridades e textão do apresentador fazendo contextualização histórica de um símbolo da negritude, de outro tivemos o cancelamento de uma mulher negra que ultrapassou os limites virtuais e se converteu em linchamento com ameaças reais com si e contra os seus”, situa Cristiane, fazendo menção a situações vivenciadas pelo professor João Luiz, que teve seu cabelo comparado com o da peruca usada para representar um neandertal, e à hostilização experimentada pela rapper Karol Conká, eliminada do programa com recorde de rejeição. 

'Cancelamento' foi motivo de medo assunto recorrente

Ao entrar no “BBB”, em um ambiente adverso e sendo vigiado 24 horas por dia durante cerca de três meses, os participantes sabem que terão seus comportamentos colocados em revista pela audiência. Quaisquer deslizes ou incoerências, serão expiados pública e, muitas vezes, impiedosamente. Não por outro motivo, neste ano, do primeiro ao último episódio, seja na voz dos brothers e das sisters ou nas palavras do apresentador, um tema se fez presente: o cancelamento. 

Em termos gerais, pode-se classificar a prática como um método de denúncia, que prega o boicote a pessoas às quais se atribui algum comportamento problemático, abusivo ou inadequado. Para Pablo Moreno, entretanto, a chamada “cultura do cancelamento” é, na verdade, um processo de responsabilização de pessoas públicas por suas falas. “Esse processo tem sido potencializado nas redes sociais, que permitem que sujeitos comuns questionem celebridades e pessoas públicas de forma que não acontecia antes”, argumenta. 

“O “BBB” mostrou uma nuance complexa no caso desses processos que já vinha sendo apontado anteriormente: diversos participantes tiveram falas machistas, racistas, homofóbicas, bifóbicas e transfóbicas, para dar alguns exemplos”, pondera o doutor em comunicação, colocando em análise elementos socioculturais que atravessam as decisões que o público toma em relação àquilo a que assiste. 

“No caso dos ditos cancelamentos, o mais marcante foi o da cantora Karol Conká, eliminada com recorde de rejeição e perdas financeiras diversas. Outros participantes, com falas e posicionamentos tão problemáticos como os da cantora, não sofreram consequências dessa natureza, como por exemplo o cantor Rodolffo. Sua música foi um grande sucesso, seu número de seguidores só cresceu e sua saída do programa foi com um número de rejeição baixo, em comparação aos paredões da edição. E isso ocorreu mesmo após o cantor ter sido crucial para a saída de Lucas Penteado, ter sugerido uma violência homofóbica ao cantor Fiuk – um homem heterossexual – por estar de vestido e após o comentário racista sobre o cabelo de João Luiz, que gerou muitas discussões sobre o cabelo como elemento de discriminação racial no Brasil”, examina Moreno. 

“Isso nos leva a pensar nas dimensões raciais do cancelamento. Quem, de fato, é responsabilizado a responder por seus erros e atitudes no Brasil? O fato de ter sido uma mulher negra a maior cancelada diz muito sobre os atravessamentos da raça e do gênero e sobre quem tem direito ao perdão neste país”, assinala.

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