Personagens de “Aqueles Dois”, conto de Caio Fernando Abreu que encerra o aclamado livro “Morangos Mofados”, de 1982, os personagens Raul e Saul, dois colegas de repartição contratados separadamente e que constroem uma relação de “estranha e secreta harmonia”, sendo alvos de ataques homofóbicos, são, normalmente, lidos como homens que, por estarem desenvolvendo uma atração homoafetiva, estariam se descobrindo gays – mesmo que em nenhum momento da história eles se reconheçam assim. Hoje, à luz dos debates mobilizados em razão do Dia da Visibilidade Bissexual, é seguro dizer que, embora seja uma leitura possível, a perspectiva é reducionista e escancara a predominante lógica binária e monossexual com a qual se compreende a sexualidade. Incomum, afinal, que se evoque a possibilidade de aqueles dois fugirem à regra monossexista – em que o desejo de uma pessoa estaria necessariamente condicionado apenas a um gênero, o oposto dela ou o mesmo. 

Publicada há quase 40 anos, a história é ainda alvo de disputa: carente de representatividade cultural, midiática e política, a comunidade bi reivindica a possibilidade de que Raul e Saul possam ser identificados (por que não?) dentro da terceira letra do movimento LGBT – entendida nesta reportagem como nomenclatura que abrange o guarda-chuva de orientações não monossexuais, como pansexuais, polissexuais e flexíveis. Não deixa de ser curioso que, concomitante à reclamada sub-representação, pessoas bi demonstrem dificuldade em falar publicamente sobre a sua orientação afetivo-sexual. A maioria, aliás, não chega a tocar no assunto nem mesmo em conversas reservadas com pessoas importantes: de acordo com uma análise de junho de 2019 da Pew Research Center a partir de dados de pesquisa recente da Universidade de Stanford, na Califórnia, somente 19% dos bissexuais se abriram sobre sua sexualidade para familiares ou amigos próximos, enquanto 75% de gays e lésbicas fizeram isso.  

“A não visibilidade e a não representatividade, sem dúvida, consolidam o tabu que cerca a bissexualidade e dificultam que mais pessoas se identifiquem assim”, sustenta a psicóloga e coach de mulheres Adriana Roque, que vê uma relação entre a sub-representação e o silenciamento. “Se não vejo no externo, fica mais difícil entender o que acontece no meu interior”, assegura.  

Mestre em comunicação social, Nanda Rossi concorda. “É preciso ser percebido socialmente e as representações midiáticas são caminhos fundamentais dessa percepção e de construção das nossas relações com o diferente”, avalia. “A bissexualidade necessita de representações existentes, complexas e que tentem, mesmo dentro da incapacidade da ficção em abranger totalmente a realidade, construir uma relação que aproxime e que não fomente a repulsa a este grupo”, completa.

Politicamente, a representação também é mínima, como examina Gabriel Azevedo, que é vereador na atual legislatura em Belo Horizonte e que, em janeiro de 2019, usou as redes sociais para falar publicamente sobre o tema. “Há uma invisibilidade da bissexualidade. As pessoas, em geral, compreendem mais a heterossexualidade e a homossexualidade. E tendem a querer encaixar os indivíduos em uma dessas duas orientações. Sou um homem bissexual cisgênero e sei que não há tantos outros assim na representação política”, comenta agora.

Para Adriana, o fato de haver poucos personagens bissexuais e de o assunto ocupar pouco espaço na mídia se relaciona à dificuldade de se compreender uma orientação que escapa à lógica monossexual. “É algo que vem de uma estrutura heteronormativa, em que o afeto só pode ser direcionado a um gênero. Mas, mesmo na comunidade LGBT, em que esse conjunto de valores é desconstruído, ficam resquícios dessa cultura, como é o caso desse entendimento muito binário do desejo”, expõe. Ela reforça que, por enfrentar uma visão limitante da sexualidade, pessoas bi acabam sendo desconsiderados mesmo quando publicamente assumem essa identidade afetiva e política. 

Identidade desautorizada

A interdição da possibilidade da bissexualidade é algo comum a rotina de quem assim se identifica, como expõe Fabiano Ribeiro dos Santos, o Pérola-Negra. “Desde muito cedo soube que homens e mulheres me atraíam. Descobri isso folheando as páginas de roupas íntimas das revistas (de venda) da (marca de cosméticos) Avon, que circulavam nas casas nos anos 90. Naquela época, não achava que fosse um problema. Mas, à medida que fui crescendo e vendo que não me encaixava, fui me retraindo. Na adolescência já me sentia um monstro, uma aberração. Estava confuso e não encontrava acolhimento ou figuras que manifestassem aquilo pelo qual eu estava passando e que me ajudassem a me compreender”, relata. Perto de completar 40, ainda sente-se desconfortável em se encarar frente ao espelho. 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Hoje membro da Frente Bi de BH, Pérola-Negra, que completa 40 anos nos próximos dias, lembra que só perto dos 30 anos começou a ler sobre essa comunidade bi – quando, finalmente, pôde entender que estava tudo bem em sentir atração por pessoas de qualquer gênero. Aos poucos, foi se abrindo e falando mais abertamente sobre o assunto e, logo, descobriu que, mesmo se assumindo bi, teria que lutar para não ter sua identidade apagada. 

“A gente precisa que cada pessoa destrua o armário imaginário que só existe na cabeça dela e entenda: nós, bi, existimos”, queixa-se. Um dos vocalistas do bloco afro Angola Janga, ele ainda sublinha como a bissexualidade choca-se com o estereótipo racista da masculinidade negra. “É esperado de nós o suprassumo da virilidade e uma completa ausência de sensibilidade. Além disso, como também em relação a mulheres negras, há uma hipersexualização dos nossos corpos”, critica. Trata-se de um preconceito que, associado à ideia equivocada de que pessoas bi são promíscuas, reverberou em episódios lamentáveis.  

“É como se a gente servisse para a cama, mas não pudesse ser apresentado a família. No caso das mulheres negras bi, isso fica mais óbvio ainda. É como se elas servissem apenas para realizar fantasias, participar de ménage à trois (expressão francesa para relações eróticas envolvendo três pessoas)”, lamenta. 

Estigmas e preconceitos

A bissexualidade de Fabiano Pérola-Negra também é cotidianamente invalidada sob o pretexto de que ele seria, na verdade, uma pessoa com dificuldade de assumir a homossexualidade. “A gente sai do armário, e as pessoas fantasiam que a gente ainda está nele”, pontua. A sensação de ter sua identidade ignorada também é motivo de incômodo para a produtora cultural Laiana Modesto, de 24 anos. “Em várias situações aconteceu de eu e minha namorada sermos interrompidas por homens que se sentiram no direito de entrar no meio, o que jamais aconteceu quando tive relações heterossexuais”, observa ela.  

Tanto Laiana quanto Pérola-negra indicam que o preconceito manifesto contra essas pessoas bi é atravessado por uma lógica falocêntrica: afinal, é como se somente quando se relacionam com homens essas relações fossem efetivas. Portanto, enquanto homens bi são lidos como gays ainda no armário, as mulheres bi são vistas como heterossexuais predispostas ao sexo com outras mulheres para satisfazer potenciais parceiros.

Efeito disso, uma outra forma de violência muito relatada por pessoas bi passa pela maneira como são hostilizadas quando, ao iniciar um relacionamento afetivo, decidem falar de sua identidade para seus potenciais parceiros. Situação assim viveu o biólogo e professor Raphael Antônio Vieira, de 37 anos. Um dos fundadores da Frente Bi de BH, ele em um namoro heterossexual, curtia momentos apaixonados e era bem-vindo na casa da moça. Tudo corria bem, até que a família dela soube que ele se sentia atraído não só por mulheres. Vieira passou a ser alvo de ataques. Para ela, por exemplo, questionavam em tom pejorativo sobre o seu “namorado viado”. Houve forte pressão para que o romance tivesse um fim, o que rapidamente aconteceu.

Laiana lamenta que esses preconceitos encontrem eco também dentro da comunidade queer. Assim, da mesma maneira que mulheres heterossexuais relutam em se relacionar com parceiros bi por medo de a relação ser apenas “de fachada”, as lésbicas demonstram receio em relação a parcerias bi por medo de serem “usadas” apenas como experiência e divertimento. Tudo isso leva a um sentimento de não pertencimento.

Algo comumente apontado por outras pessoas da comunidade bi, quando a produtora cultural resolveu se abrir e falar sobre a sua bissexualidade, enfrentou incompreensão de toda parte. No seio familiar, ouviu o pedido para que se afastasse da igreja que frequentava – o que fez com que se sentisse excluída de uma dimensão importante da vida de sua mãe. Ao buscar acolhimento entre LGBTs, sentiu-se mais uma vez sozinha. Mais tarde, quando começou a namorar uma mulher, precisou conviver com a desconfiança. “Amigos e amigas da minha namorada invalidavam nosso namoro por acharem que a minha orientação era puro ‘biscoito’, que eu só queria aparecer mesmo e que eu ia fazê-la sofrer”, revela. Além disso, não foram poucas as vezes em que ouviu – quase como um diagnóstico e mesmo de pessoas que mal conhecia – que aquela era apenas uma fase e que ela estava confusa. 

Invisibilidade tem repercussão na saúde mental

A exclusão e a invalidação da bissexualidade têm repercussão para a saúde mental dessas pessoas. “Todo ser humano quer viver em sua totalidade. Neste sentido, é problemático que não se possa dizer sobre si, sobre sua orientação afetivo-sexual ou sentir que essa afirmação, quando dita, é ignorada”, assinala Adriana Roque. Ela lembra que esse grupo de pessoas pode enfrentar problemas de aceitação no ambiente familiar e, ao buscar acolhida junto a LGBTs, se sentirem repelidas.  

De fato, uma pesquisa de 2015 publicada no periódico científico norte-americano “Journal of Bisexuality” sugere que, ao contrário do que acontece no caso de gays e lésbicas, a tentativa de se integrar à comunidade queer não é tão benéfica para pessoas bi. Outro artigo publicado na mesma revista em 2016 indica que mulheres bissexuais são mais propensas a cometer suicídio do que as heterossexuais (5,9 vezes) e as lésbicas (3,5 vezes). 

Outros estudos chegam a conclusões semelhantes. Em uma publicação no Journal of Public Health, em 2015, o professor e pesquisador Ford Hickson, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, sentenciou: “Bissexuais têm um risco maior de serem marginalizadas nas comunidades gays, assim como no resto da sociedade”. A pesquisa liderada por ele indicou que as bissexuais têm 64% mais chance de enfrentar distúrbio alimentar e estão 26% mais propensas a sofrer com quadros de depressão em relação a lésbicas.

E o enfrentamento do adoecimento mental ainda encontra outro revés para essa parcela da população: “Há psicólogos que ainda colocam a bissexualidade no lugar da confusão e do trauma familiar”, observa Adriana. Mais uma vez, um estudo do “Journal of Bisexuality” reforça a tese. Uma publicação de 2004 demonstra que, ao contrário dos relatos de gays e lésbicas, a psicoterapia, para a maioria dos bi, ainda não era vista como uma ferramenta útil para que se sentissem seguros na lida com a sua sexualidade.

Bissexuais não estão imunes ao sofrimento

Apesar do flagrante quadro de risco para o adoecimento mental, inclusive em razão de discriminação, é comum ouvir que bissexuais gozam de privilégios por terem a possibilidade de “escolher” estar em uma relação heterossexual sem nunca ter que revelar que nutrem desejos por pessoas de outros gêneros. De fato, há pessoas que passam a vida sem trazer esta questão à tona, o que não significa que inexista sofrimento, comenta Adriana.

A comunicóloga Nanda Rossi acrescenta que o apagamento e a invisibilidade de existência e da experiência da comunidade bi refletem em uma insensibilidade em relação à dor dessas pessoas. “Assim há uma ideia comum que o indivídio bissexual não está em sofrimento ou não passa por ele em diversos momentos de sua vida”, sustenta. Um preconceito tão patente que a vivência desse grupo social ainda desperta tímida atenção de pesquisadores: um artigo de 2005 do mesmo Journal of Bisexuality aponta que bissexuais costumam ser tratados como gays e lésbicas, desconsiderando características próprias de sua comunidade. 

É a partir de sua própria história que Nanda, que é uma mulher bi, busca desconstruir essa ideia fantasiosa. “Já lidei com diversas situações em que me senti discriminada por conta de minha orientação sexual. Passei por violências no ambiente familiar, social e de militância também. Como alguns exemplos, posso trazer a expulsão de casa, ameaças e perseguição, violência psicológica e diversos xingamentos. A pessoa bissexual também sofre violência e discriminação por conta de sua orientação”, reforça.

Antes de compreender a própria sexualidade, questionamentos são comuns

Outro motivo de angústia, Adriana Roque examina ser comum que bissexuais sintam-se inicialmente inseguros em relação à própria sexualidade. Mesmo que não tenham dúvida sobre se sentirem atraídas por pessoas do gênero oposto, essas pessoas podem pensar que são, quando homens, gays ou, quando mulheres, lésbicas. “Entender essa orientação afetivo-sexual fora dessa caixinha do monossexualismo não parece, para boa parte da sociedade atual, uma tarefa fácil. Não raro, esse entendimento gera incômodo nas pessoas – inclusive, nas bissexuais, que muitas vezes encaram esses questionamentos por serem cobradas a ter que escolher apenas um gênero”, explica a psicóloga.

A análise proposta por ela parece, de alguma maneira, representada no conto que abre esta reportagem. Ainda que não seja o foco, é na publicação “Revisões da masculinidade sob ditadura: Gabeira, Caio e Noll”, de 2014, que o doutor em literatura latino-americana Idelber Avelar sublinha reflexões que aproximam a história de Raul e Saul das considerações de Adriana.

“No caso de ‘Aqueles dois’, fundamental para o efeito da história é o fato de que sabemos que os personagens não se identificam como gays e, se os leitores e os colegas de repartição não sabem qual é a natureza daquilo que os une, eles tampouco o sabem. Estão atados por um afeto que ainda não tem nome: ‘Não tinham preparo algum para dar nome às emoções nem mesmo para tentar entendê-las’. Essa zona de indeterminação acaba sendo enlouquecedora para os colegas de escritório, que assumem a posição de guardiões da ordem heteronormativa”, anota o professor de literaturas hispano-americanas e brasileira na Tulane University, Nova Orleans. 

“Mais ameaçador para essa ordem não é, portanto, a possível presença de dois homens gays, mas o fato de que a fronteira supostamente estável entre homo e heterossexualidade parece se desfazer”, completa.