O senso comum garante: “mulher é competitiva”. Em uma enquete no portal de O TEMPO, 93% dos participantes concordam com a afirmação, contra apenas 7% que não acreditam nessa hipótese. A ciência também respalda essa rivalidade. Em 2013, o periódico científico “Royal Society”, de Londres, dedicou uma edição inteira ao tema, concluindo que existe uma raiz biológica nas manipulações lançadas pelas mulheres contra suas concorrentes. “Há cada vez mais evidências da importância evolucionária da competição feminina”, defendeu a bióloga britânica Paula Stockley.

Mas os argumentos contra essas pesquisas do campo da psicologia evolutiva são tão contundentes que não seria exagero classificá-las como balelas científicas. O estudos biológicos acertaram em uma coisa: não se pode negar que a competição feminina existe. Mas os cientistas também erraram: a causa dessa competição passa longe da biologia humana.

“Se o comportamento (competitivo) fosse completamente biológico, nós não teríamos amigas, não teríamos afinidade com nossas mães, irmãs, primas”, defende a antropóloga Michele Escoura, especialista na área de sexo e sexualidade e pesquisadora de gênero da Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade de Campinas (Unicamp).

Assim, não existe um instinto que provoque tal rivalidade. “A espécie humana está completamente descolada das questões instintivas. Quando entra em jogo a linguagem, toda forma de ver a própria espécie é uma construção sócio-histórica. Nós nos vemos por uma perspectiva que é construída pela história e pela cultura”, destaca o psicanalista Alberto Timo, que pesquisa violência contra as mulheres em seu doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Ideologia. Há ainda quem defenda que esse tipo de ciência sobre a competição feminina só contribui para que a visão estereotipada da mulher se perpetue. “Se você fala que um grupo historicamente oprimido nunca vai poder se unir, que sempre será um sexo ‘ruim’ e traiçoeiro, você contribui para que ele não se una mesmo. Toda ciência é ideológica”, opina a blogueira feminista Lola Aronovich, professora do departamento de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Os exemplos dessa visão estereotipada estão por toda parte. A estudante universitária Clara Lopes (pseudônimo usado a pedido da entrevistada), 21, admite já ter sido “vítima” e “algoz” de competição com outras mulheres. “Há cerca de seis anos, eu fui vítima, quando em um acampamento uma amiga minha soube que um menino estava a fim de mim. Eu gostava de outro, mas estava me abrindo para as possibilidades. O menino nem havia falado nada comigo, mas minha amiga se adiantou e falou com ele, de uma forma muito grosseira, que eu jamais ficaria com ele, porque gostava de outro”, lembra.

Em outra vez, ela se envolveu com um rapaz de quem gostava e que tinha namorada. “Eu não me importei. Em alguns momentos, eu me senti superior a ela, porque eu sabia mais da vida do menino do que ela, que era namorada. É uma coisa da qual me envergonho muito”, revela.

Dessas experiências, Clara tirou uma lição que, agora, baliza sua vida. “Hoje eu tenho esta percepção de que não tenho que ficar competindo com ninguém. Isso melhorou muito minha autoestima e até meu namoro. Sou menos ciumenta com ele, entendo que, se ele está comigo, é porque gosta de mim e quer ficar comigo”, conta.

No fim das contas, parece que quem fica com a razão é a escritora Simone de Beauvoir, ainda no início do século XX: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualifica o feminino”.

Minientrevista

Alberto Timo - Psicanalista Pesquisador da UFMG

“Os homens competem desde bem pequenos.”

Por que essa competição feminina é tão forte?

A nossa sociedade é construída para a competição, e não para a colaboração. Contribuir para que as mulheres se dividam, e não para que se unam, faz parte de jogos de poder em que os homens preferem as mulheres em campos de competição do que em campos de alinhamento.

E os homens também são competitivos entre si?

Os homens competem desde pequenininhos em jogos de força. A disputa vai se manifestar de formas diferentes, porque o homem sempre teve direito a voz.

Mas só as mulheres são vistas como traiçoeiras e “falsas”. Por quê?

As mulheres sempre foram reprimidas como um grupo que não podia ter direito à voz nas decisões públicas. Mas nem por isso elas deixavam de se manifestar. Essa visão de que as mulheres são maledicentes e fofoqueiras, nós precisamos entender como uma forma de manifestação de poder que só podia ser feita por meio de subterfúgios. É por não ter tido acesso ao direito da fala, como os homens, que elas vão tentar se manifestar de forma diferente.

Sentimento também impõe separação

Bastava a designer de produtos Isabela Lopes, 37, dizer que tinha plano de fazer alguma coisa, que sua amiga corria e fazia na frente. Isabela trabalhava com telemarketing e conseguiu passar em um processo de seleção para supervisora. “Passou um tempo, ela (a amiga) me avisou que tinha feito uma entrevista para supervisora em outra empresa e tinha sido contratada. Aí que eu comecei a perceber uma certa concorrência”, conta.

Depois, veio a carteira de motorista. A amiga estava para perder o prazo de cinco anos para tirar a habilitação e já havia até desistido de dirigir. “Quando eu comecei o processo para tirar minha carteira, ela retomou a pauta, passou antes de mim e ainda me postou no Facebook: ‘Tirei a carteira, Bela, só falta você agora’”, ela diz. Com tanta competição, Isabela achou melhor romper os laços e não ter mais contato com a amiga que se colocava como sua “rival”.

Esse comportamento é típico de uma cultura que tem sido muito propagada: o culto à inveja. Para a estilista e designer de estampas Juliana Brandão, 30, esse é mais um legado da competição entre mulheres, tão estimulada na sociedade.

“Acho que as mulheres precisam ser alertadas, porque fazem sem perceber. Essa questão de ostentar para outras mulheres se sentirem piores é muito ruim”, avalia.

Na semana passada, a apresentadora Rafa Brites postou em seu Facebook um vídeo sobre isso. “Eu espero que eu não seja a única que despreza esse movimento do ‘a sua inveja é o meu combustível’. Ele não nos deixa mais poderosas. Ele nos enfraquece, nos separa e faz com que percamos uma unidade muito forte, que é a unidade feminina”, defende.