Distraída enquanto escolhia uma playlist musical no smartphone, a técnica em enfermagem Mirian Celeste, 40, quase se envolveu em uma tragédia que poderia ter-lhe custado a vida. “Estava atravessando a linha ferroviária, ouvindo música nos fones de ouvido, e não prestei atenção. Por isso, quase fui atropelada”, recorda, garantindo que o susto se converteu em aprendizado. A partir de então, além de optar por deixar o volume mais baixo, ela garante que passou a não usar telas quando está em locais públicos. Com a mudança de postura, Mirian passou a perceber como a infinidade de possibilidades diante de um celular costuma gerar distração que, não raro, provoca situações incômodas, embaraçosas e perigosas. Agora, sem muita paciência para quem fica tão absorto no universo virtual que acaba atravancando filas, bloqueando passagem ou cometendo outros diversos deslizes cotidianos, a técnica de enfermagem garante advertir os distraídos de plantão.
Dos pequenos deslizes a situações de risco, o motorista profissional Claudinei Francisco, 56, dá testemunho de como o mesmo dispositivo que pode nos ajudar a chegar a um destino evitando áreas de trânsito intenso pode, também, ser um problema nas estradas. “Eu vejo isso diariamente. E é por essa razão que, quando estou dirigindo, nem encosto no telefone. Se por acaso ele tocar, eu paro o carro, vou para o acostamento e, então, retorno a ligação. Agindo dessa maneira, sei que não vou trazer transtorno para ninguém”, argumenta, se dizendo muito cuidadoso, inclusive quando não está no volante. “Muita gente se distrai fácil no próprio mundinho. Mas comigo isso não acontece. Eu acho realmente importante estar atento ao que acontece ao nosso redor e ser cuidadoso com nosso modo de agir”, argumenta.
Francisco orgulha-se da relação que estabeleceu com a tecnologia. Ele sabe que é um bom exemplo e sabe ser uma exceção. Afinal, para um grande volume de pessoas, o smartphone é uma isca com um quê de irresistível. Para se ter uma ideia, estima-se que, em média, as pessoas chequem o celular cerca de 220 vezes em um único dia. É o que aponta uma pesquisa de 2019 da consultoria inglesa Tecmar, cujos autores chegam a comparar o potencial viciante do dispositivo tecnológico ao de uma máquina de caça-níqueis. Diga-se, uma das mais imediatas e trágicas implicações desse hábito pouco saudável se percebe no trânsito. Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) adverte que as chances de um motorista utilizando o celular se envolver em um acidente aumentam 400%, a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) confirma que essa combinação é uma das principais causas de morte no trânsito no país.
Evidentemente, o problema não é tecnologia em si, mas como nos relacionamos com ela, como argumenta a psicóloga clínica Leni de Oliveira. “O celular é parte indissociável da vida moderna e é um potencializador das interações sociais, além de ser uma ferramenta poderosíssima para a informação e o aprendizado. Em isolamento físico, experimentado devido à pandemia, esse dispositivo permitiu que a gente conseguisse se aproximar dos outros e manter relações”, lembra.
Mas, ao mesmo tempo que é um instrumento que nos permite interagir com os outros, o mau uso desses dispositivos pode, paradoxalmente, nos levar a uma desconexão com o meio em que estamos.
Desconexão
Para o psiquiatra Nélio Tombini, autor dos livros “A Arte de Ser Infeliz” e “Não Deixe a Dúvida te Maltratar”, os smartphones, muitas vezes, provocam sensação de desconexão com a realidade que se apresenta para ela naquele instante. “Por exemplo, ela sabe o que está acontecendo com outras pessoas, sabe onde elas estão, o que estão fazendo, mas não se dá conta que a fila do caixa andou e precisa ser avisada disso”, diz, asseverando que outro efeito adverso associado ao uso inadequado desses dispositivos é a desconexão relacional. “É aquele típico episódio em que o sujeito está de corpo presente em um lugar, mas, mentalmente, está ausente. Então, ele deixa de estabelecer trocas autênticas e significativas”, pontua.
Na avaliação do estudioso, “a tecnologia tem levado as pessoas a estarem abandonadas em si mesmas”. “Por isso, é tão comum a queixa da solidão: como nos fechamos cada um no nosso mundinho, não estabelecemos trocas e nos sentimos sós, mesmo quando acompanhados. Ainda que não seja um quadro de vício em tecnologia, esse mau uso pode gerar o adoecimento, causando sensação de abatimento e de isolamento, que vão repercutir em quadros depressivos e ansiosos”, sinaliza.
Tombini defende que “desconexão” é a palavra fundamental para definir essa relação disfuncional com os smartphones. “Ao nos conectarmos com um mundo mágico, com tantas possibilidades e onde conseguimos realizar nossos desejos com um simples toque, perdemos a conexão com aquilo que nos cerca, com as paisagens, as pessoas e os acontecimentos a nossa volta”, frisa. Um fenômeno que pode atrapalhar uma vida sadia, com boas memórias e bons relacionamentos interpessoais. “Imagine que uma pessoa está de férias, em uma praia, por exemplo. Se ela passa o tempo ao celular, ela nem sequer vai registrar aqueles momentos”, situa.
Além disso, o psiquiatra sugere que o excesso de telas tende a gerar impactos relacionados à percepção do tempo. Nesse caso, em vez de vivenciar uma temporalidade orgânica, passamos a nos comportar como no acelerado tempo do digital. “Daí, temos implicações como a baixa tolerância à espera. Uma pessoa habituada a resolver tudo com um toque pode ficar irritada se tiver que esperar que um prato seja feito e, por isso, vai querer tudo cada vez mais instantâneo”, lembra. Por fim, ele cita um limiar de frustração mais baixo associado ao conforto individual propiciado no ecossistema desses dispositivos tecnológicos. “No seu celular, você escolhe a música sozinho, decide o que vai assistir… Enfim, suas vontades vão ser satisfeitas. Daí, quando você precisa negociar, decidir coletivamente, tudo fica mais difícil”, argumenta.
Etiqueta
Além de o mau uso dos smartphones expor as pessoas a situações de risco, há também boas chances de fazê-las parecer mal-educadas e inconvenientes. Pensando nisso, a reportagem pediu dicas a Luciane Berto, especialista em saúde mental, desenvolvimento humano e etiqueta comportamental, sobre como se portar no encontro com o outro, evitando que a tecnologia seja um obstáculo para trocas autênticas.
“Quando chegamos à casa de alguém ou vamos para uma reunião, por exemplo, o celular precisa estar guardado. Idealmente, não deve nem ser posto sobre a mesa, porque, se ele vibrar ou piscar, mesmo no modo silencioso, a nossa atenção se voltará imediatamente para ele”, aconselha. “Se eu precisar receber uma ligação importante e, portanto, tiver que deixar o celular ao alcance dos olhos, é recomendável avisar ao outro que temos um telefonema a receber. Então, quando o dispositivo tocar, eu peço licença, saio do lugar do encontro e atendo a chamada”, diz.
Ao usar o aparelho em outros ambientes públicos, como em um supermercado, Luciane recomenda redobrar a atenção ao meio em que estamos evitando, assim, obstruir o caminho de outras pessoas, por exemplo.