A invasão dos teclados digitais no nosso dia a dia sugere que a escrita convencional tem seus dias contados. Por que ensinar letra cursiva na era da tecnologia?

Não é de hoje que se questiona a letra cursiva. Há cerca de 30 anos, a cursiva foi duramente questionada, porque as letras que usávamos em outdoors, revistas, TV, jornais e afins era a impressa. Atualmente, o questionamento vem por causa da era da tecnologia, mas a tecnologia está longe de fazer parte integral de nosso conhecimento. O contato que as pessoas possuem com tecnologia é superficial e muito longe de atingir o necessário para uma alfabetização ou para deixarmos de usar a letra cursiva. Usar a tecnologia não significa saber usá-la nem ter recursos nas escolas que consigam alcançar uma total migração da cursiva para a escrita digital. Além disso, a letra cursiva traz benefícios que outros tipos de escrita ainda não possuem.

Você acredita que essa escrita vai desaparecer?

Caso desapareça, levará ainda décadas (ou mais). Países mais desenvolvidos já tentaram bani-la das escolas e tiveram que fazê-la voltar. O Brasil mesmo usou durante anos o que chamamos de letra bastão (ou caixa-alta) durante os primeiros dois ou três anos do ensino fundamental, e o resultado foi – e tem sido – desastroso. A falha na interpretação de textos, a falta de coordenação motora fina e outros males têm acometido grande parte da população e cobram seu preço. Embora tenhamos alta taxa de desemprego no país, temos também uma imensa falta de qualificação, que se deve a falhas na educação, ocorridas por diversos motivos, entre eles essa lacuna deixada pelo quase banimento da cursiva que tivemos no país. A letra cursiva deve ser aprendida e estimulada desde a educação infantil. Ela começa com o estímulo da coordenação motora fina e hoje temos uma porção de recursos mais avançados para desenvolver a musculatura e movimentos dos dedos e das mãos. Já no primeiro ano deve ser estimulada, mas não precisa ter uma relação direta com a alfabetização. A princípio, pode ser um estímulo de “desenho” da letra e, conforme a criança se alfabetiza, a cursiva ganha significado e se torna mais natural.

Por que o ensino dessa letra para crianças em alfabetização divide a opinião de educadores?

As opiniões se dividem por vários motivos, entre eles a falta de conhecimento de como ensinar a letra cursiva, o fato de o próprio educador não ter passado por um processo de aprendizagem estruturado desta modalidade e até mesmo pelo trabalho que ela requer. A fase de alfabetização ainda é uma incógnita para vários educadores, e há quem chegue a alegar que fica difícil alfabetizar e ensinar a cursiva, como se fossem elementos separados. A cursiva, na verdade, auxilia, e muito, a alfabetização.

A letra cursiva é trabalhosa de ensinar, ainda mais quando a escola não trabalha a coordenação motora fina como deveria?

Por ter sido rechaçada por muitos anos e ter retornado recentemente, por causa de resultados desastrosos, a letra cursiva é trabalhosa porque, na educação infantil, muitas escolas ainda não retornaram com o trabalho de desenvolvimento da coordenação motora fina, especialmente com o uso de traçados. Quando o aluno chega ao primeiro ano ou até a classe de 5 anos, que é a prévia do infantil ao fundamental, muitas vezes não teve o estímulo necessário nem para segurar o lápis. Daí vem parte da alegação que “é difícil alfabetizar e ainda ensinar letra cursiva”. Ensinar letra cursiva no primeiro ano para um aluno que já teve estímulo de coordenação motora fina é relativamente fácil, mas ensinar aos que não tiveram gera a necessidade de um tempo que o professor alfabetizador não possui. Ele deve resgatar uma porção de movimentos que não foram ensinados, e a dinâmica de uma sala de primeiro ano não permite.

Qual é o papel dos pais nesse aprendizado?

Incentivar. Como expliquei, há algumas décadas, a cursiva foi repelida da fase de alfabetização. Mesmo assim, devido a sempre estudar sobre os benefícios desse tipo de letra e ter a convicção de que não podemos negar conhecimento aos nossos alunos nem subestimá-los, mesmo neste período de rechaçamento da cursiva nas classes de alfabetização, sempre a ensinei, algumas vezes até escondida. Não abria mão por causa dos resultados em relação a classes que não usavam. Nesta época, os próprios pais também a repeliam. A justificativa era, na maioria das vezes, baseada no questionamento da necessidade de usar uma letra “desenhada”, enquanto jornais, revistas e outdoors usavam a letra impressa. Eu era duramente questionada pelos pais durante o ano e, na última reunião, recebia elogios por ter ensinado a letra cursiva. Antes de repelir o uso, é importante que os pais tenham consciência da importância que a cursiva terá na vida de seus filhos. Enquanto não é possível ter os mesmos resultados com tecnologia ou com outros recursos, é importante, ainda, estimular. Os pais podem incentivar as crianças a fazer atividades com coordenação motora fina para facilitar a aquisição da letra cursiva no desenvolvimento escolar. Orientar e auxiliar as crianças só trará benefícios.

Cite algumas razões para aprender a escrita cursiva.

A letra cursiva tem uma porção de benefícios estudados e comprovados: ajuda a refinar o movimento e criar habilidades nos dedos, desenvolve o trabalho conjunto entre o movimento ocular e a escrita, estimula a atenção e minimiza as distrações, cria indiretamente habilidades que são ligadas à percepção de conceitos abstratos e instruções verbais, aprimora a clareza de pensamento, a organização de ideias e a comunicação no modo escrito, estimula a memória, promove a integração de várias habilidades de aprendizagem, estimula o cruzamento mediano (habilidade de mover a mão, os olhos e parte do braço na porção mediana do corpo sem mover o restante dele) e ainda desenvolve o ‘input’ tátil (a consciência dos objetos e a pressão necessária para a escrita). Além de todas essas razões, a cursiva ainda tem ligação direta com a leitura interpretativa, e não ensinar a cursiva pode provocar lacunas de aprendizagem.

Fique à vontade para acrescentar outras informações.

A letra cursiva é algo demorado de se ensinar. Com a tecnologia, temos sempre pressa. As máquinas são rápidas, porque possuem uma forma de processamento diferente do ser humano. A aprendizagem da leitura e da escrita não é algo natural no ser humano. Começa a ser desenvolvida em uma área de nosso cérebro responsável pelo reconhecimento de rostos e objetos, que é quando começamos a aprender os traçados do alfabeto que iremos usar. Aos poucos, a informação expande no cérebro e forma as conexões necessárias para que possamos ler interpretando. O ensino da letra cursiva, tanto por seus traçados, pelo fato de as letras se unirem nas palavras e também, não menos importante, ter que passar por um processo que achamos demorado, faz com que o cérebro consiga formar estruturas mais aprimoradas de conexões para a leitura e escrita e, assim, promove uma aprendizagem mais aprofundada. Embora estejamos na era tecnológica, como chamamos, nosso corpo continua sendo humano, e a escrita por teclado digital não consegue ter os mesmos resultados. Será preciso muitos estudos, mudanças de técnicas e estímulos para que isso possa ocorrer.