O movimento de demissões voluntárias registrado nos Estados Unidos após a pandemia da Covid-19 surpreendeu estudiosos e agentes do mercado de trabalho. Afinal, naquele momento, o país ainda lidava com uma realidade de quase 10 milhões de desempregados. De maneira contraintuitiva, em vez de esse cenário de adversidade fazer que as pessoas valorizassem mais os vínculos empregatícios, mais de 4 milhões de norte-americanos abandonaram seus antigos empregos – número que correspondia a cerca de 2,7% do total da população empregada naquele território. O fenômeno parece ter materializado o que o especialista em psicologia organizacional Anthony Klotz batizou de “great resignation”, ou “grande renúncia”, em tradução livre. A tese defendida por ele sugere que uma parcela crescente da população, por diversos motivos, entre os quais o cuidado com a saúde mental, deve optar por abrir mão da estabilidade em função do próprio bem-estar. 

Agora, ainda que em uma escala mais modesta e mesmo com o país registrando uma taxa de desemprego de 9,3%, essa tendência parece também ter chegado ao Brasil. Nacionalmente, de janeiro a maio deste ano, foram registrados quase 3 milhões de pedidos de conta por iniciativa do funcionário. Em comparação com o ano passado, o número representa um crescimento de 33,8% no volume de desligamentos voluntários, conforme dados apurados pela área de Estudos Econômicos da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho e Previdência.

No território brasileiro, o fenômeno da “grande renúncia” tem perfil bem característico, sendo protagonizado por homens de até 29 anos, que possuem ensino superior completo e atuam, fundamentalmente, na área da tecnologia. Evidentemente, essa tendência no mercado de trabalho não possui explicação fácil e está relacionada a diversos fatores. Contudo, conforme já apontou Klotz, é provável que a preocupação com a saúde mental seja o elemento central desse movimento.

E é nesse contexto de mudança das dinâmicas nas relações laborais – quando questões relacionadas ao bem-estar ganham mais importância, sendo consideradas um ativo para a retenção de talentos e para a obtenção de bons resultados – que estudos como o da pesquisadora Amy Edmondson, ligada à Harvard Business Review, ganham relevo. Há anos, a estudiosa investiga a “cultura da segurança psicológica nas empresas”, avaliando seus impactos para a performance individual e coletiva dos trabalhadores.

Acolhimento, escuta e prática

“Este é um conceito que pode ser aplicado em diferentes ambientes, seja familiar, escolar ou profissional. De maneira geral, podemos dizer que, se você se sente à vontade para agir, pensar e sentir, se se sentir livre para manifestar suas inquietações, ideias e frustrações de forma autêntica, então, neste ambiente, há uma cultura de segurança psicológica”, explica a psicóloga e especialista em gestão de pessoas e negócios Graziela Alves. “O contrário disso seria aquele espaço em que você tem medo de se manifestar, sob o risco de ser censurado, de virar chacota e de não ser ouvido verdadeiramente. É onde você tem receio de se manifestar contrário a uma decisão por temer ser interpretado de maneira equivocada e onde evita se arriscar porque, por qualquer erro, sabe que será punido severamente. E é aquele lugar em que você teme ser mal visto caso expresse sua identidade e subjetividade – expondo sua orientação sexual, por exemplo”, complementa.

Para Graziela, a preocupação com a segurança psicológica está associada à percepção de que ambientes com essa características tendem a favorecer a inovação e contribuir para a obtenção de melhores resultados e para a retenção de talentos. “Em um mundo globalizado, onde o acesso à tecnologia e à matéria-prima se tornou mais facilitado, as empresas entenderam que o seu diferencial é o recurso humano. Dessa forma, pensando em como acessar às potencialidades das pessoas e valorizar esse diferencial, vem crescendo a preocupação com o bem-estar no ambiente laboral”, pontua.

Por outro lado, a especialista em comportamento humano e produtividade Carolina Jannotti lembra que estudos diversos já demonstraram que ambientes psicologicamente inseguros, em que não há diversidade, escuta ativa e tolerância ao erro, são um campo fértil para omissões, negligências e mentiras. “Basta pensar que se a pessoa se sente acuada até para tirar dúvidas ela terá mais chances de errar. E, se errar, poderá tentar omitir esse erro para evitar uma punição. Sem contar que, se não vai ser ouvida, ela simplesmente vai deixar de contribuir, de forma que processos deixarão de ser melhorados e práticas inovadoras não serão experimentadas”, avalia.

Além disso, ponderando que as pesquisas sobre a “grande renúncia” ainda são muito recentes, ela situa que a maioria delas aponta que questões subjetivas fomentam esse movimento. “Até pouco tempo atrás prosperava a crença de que o investimento, quase exclusivo, em aspectos de remuneração e de outras vantagens materiais seria suficiente para contornar movimentos como esse da ‘great resignation’. Porém, o que se está verificando é que, no topo da lista, questões ligadas ao clima organizacional e às relações humanas nas empresas pesam mais nessa decisão”, detalha Carolina, mencionando que a preocupação com a saúde mental se tornou mais pulverizada nas gerações mais recentes. 

Graziela concorda. Para ela, há dois fenômenos correndo em paralelo que contribuem para a valorização da segurança psicológica no trabalho. “De um lado, o mundo corporativo entendeu que as pessoas são, potencialmente, o diferencial competitivo de uma marca e, de outro, os indivíduos têm priorizado cada vez mais a saúde e o bem-estar e, por isso já não se sujeitam a condições que considerem adoecedoras”, sinaliza.

As duas especialistas ouvidas por O TEMPO sinalizam que a construção dessa atmosfera depende de uma série de fatores, entre eles a capacidade de escuta ativa, especialmente das lideranças. “É necessário saber ouvir, mesmo ao ser contrariado, sem ter tanta pressa de falar, de responder e evitando a recusa precoce de ideias e sugestões. E é preciso tolerância ao erro, para que as pessoas se sintam mais dispostas a aprender – e não a se esconder”, crava Carolina, assinalando que essa cultural laboral não será alcançada do dia para a noite. “É algo que vem com o tempo. E que vai ocorrer mais rapidamente se as lideranças tiverem esse perfil de abertura e de atenção, e forem exemplos dessa prática”, avalia.

Tópicos

A psicóloga Graziela Alves elenca alguns tópicos que, em geral, contribuem para a construção de uma cultura empresarial psicologicamente segura.

Diversidade. “Para começar, podemos pensar se este é um ambiente verdadeiramente aberto às diversidades – de gênero, de orientação sexual e de origem, por exemplo”.

Inclusão. “Ao mesmo tempo, é fundamental não apenas empregar as diversidades, mas também incluir esses atores, ouvindo-os e incluindo-os”. 

Equidade. “Um aspecto especialmente desafiante é a valorização da equidade, e não simplesmente da igualdade. Para isso, é preciso uma gestão sensível às demandas de cada um e transparente para expor a razão, por exemplo, de estar sendo mais flexível com uma pessoa ou com um departamento – que pode estar passando por uma realidade mais complexa naquele momento”.

Pertencimento. “Neste ponto, estamos falando de ser um ambiente acolhedor, onde as pessoas se sentem bem-vindas, onde elas podem ser quem elas são. Obviamente, uma pessoa que precisa se reprimir não vai desejar continuar naquele lugar por muito tempo e não vai se dedicar verdadeiramente àquele projeto, do qual não se vê como parte”.