Que atire a primeira pedra quem nunca levou para as redes sociais, conversas de bar ou terapia queixas e arrependimentos sobre relacionamentos do passado ou do presente. Mas há um tipo específico de relação que parece deixar um maior contingente de pessoas insatisfeitas e desesperançosas, e, por isso, há até um termo para descrever essa situação: o heteropessimismo. Trata-se de neologismo usado para falar da forma negativa e pessimista como muitos jovens heterossexuais têm se sentido, em especial mulheres.

No artigo “Heterossexualidade alternativa”, publicado na revista literária internacional “Astra Magazine”, a escritora Maria Clara Drummond explica que a expressão foi cunhada em 2019 pela pesquisadora norte-americana Asa Seresin, que estuda gênero, sexualidade e questões relacionadas a mulheres e que publicou o ensaio “On Heteropessism”. “Heteropessimismo é a desidentificação performativa de mulheres com sua própria heterossexualidade, expressa na forma de constrangimento ou sarcasmo. Não à toa, o ambiente mais fácil para encontrar exemplos de heteropessimismo são as redes sociais, em especial o Twitter. É ali que o humor autodepreciativo encontra seu lar”, indica Maria Clara. 

Para a psicóloga Juliana Schaun Benfica, uma série de fatores tem gerado essa sensação de desesperança feminina em relação ao afeto masculino. “Por séculos, mulheres foram ensinadas que a servidão é o sentido da vida feminina. Pagamos um altíssimo preço por isso, fomos reduzidas a puro objeto sexual para satisfação masculina. Tomar consciência disso dói”, lembra. 

“E, além disso, estamos vivendo isolados em nossas bolhas, estamos sendo tomados pelo horror à diferença. Isso fica explícito nas polarizações em diversas áreas sociais, como se tudo que é diferente a mim fosse o mal encarnado. As redes sociais e os algoritmos nos impulsionam ainda mais a vermos cada vez mais do mesmo. A consequência disso é uma alienação de achar que as coisas são o que são, sem refletir suas particularidades e individualidades”, acrescenta, sugerindo que esse fenômeno tem levado muitas mulheres a se confundirem. “Elas acham que estão se protegendo dos golpes, mas, na verdade, estão ficando superexigentes com o outro, tomando toda diferença como abuso, porque vale lembrar que as mulheres estão tendo acesso a conhecimento e informação, mas não possuem muitas ferramentas psíquicas para saber diferenciar o que seria ou não abuso. Assim, a diferença vira indiferença, a frustração do que esperávamos que o outro fosse vira rejeição, e a individualidade do outro se transforma em ataque ao nosso eu”, sinaliza. 

Juliana acredita que esse comportamento pode ter consequências nocivas. “Colocar os homens como vilões, e não o patriarcado, leva as mulheres a não saberem reconhecer a diferença entre abusos, violência, sexismo e apenas incômodos pela diferença que a relação com o outro nos convoca”, critica, apontando a forte relação entre o heteropessimismo e “a dificuldade em conciliar demandas afetivas diante da cultura heterossexual, que é pautada pela desigualdade e violência”. 

Não por acaso, a psicóloga admite que, nos atendimentos clínicos, ela tem percebido, recorrentemente, sinais de ressentimento acompanhados de queixas constantes de que “os homens não prestam e não querem nada sério”. Ela diz notar também a ocorrência do medo dessas pacientes quanto a se envolver em uma relação abusiva.  

Força conservadora 

No artigo publicado pela revista “Astra”, Maria Clara Drummond argumenta que, embora o heteropessimismo tenha o potencial de revolucionar a heterossexualidade, não é isso que acontece. “Ao contrário, seria uma força anestesiante, que retardaria qualquer mudança significativa. Isso ocorre, acredito, porque as adeptas do heteropessimismo se encontram em uma relação malresolvida de amor e ódio com os objetos de seus afetos”, elabora.  

A psicóloga clínica Juliana Schaun Benfica também tem a sensação de que esse pessimismo costuma ser manifestado com certa resignação. O que, para ela, é um grande problema. “Achar que as relações heterossexuais estão fadadas ao fracasso é tirar o corpo fora da responsabilidade de repensar as relações”, crava.  

Ela lembra que, culturalmente, homens e mulheres aprenderam a se relacionar de forma disfuncional. “A mulher, por ser ensinada a temer a solidão, constantemente se anula para caber nas expectativas do outro na espera de ser amada e assumida. Tornam-se desesperadas para terem um homem, o que as coloca em risco de relações abusivas, porém, como ganho secundário, não precisam ter que se responsabilizar pela própria vida. Entregam o destino na mão de outro, deixando que o outro decida o que, como e quando deve ou não fazer isso ou aquilo. Então, quando der algo errado, terá a quem culpar, sem ter que admitir sua própria responsabilidade nas escolhas que a prejudicaram”, diz. “Já o homem governa a mulher e se mantém como o bebê da mamãe que recebe tudo e não se preocupa nem com o que vai vestir ou comer. Essa é a lógica das relações heterossexuais baseadas no pensamento patriarcal. São relações infantis! Mulheres que não querem bancar as tensões da vida e homens que não querem cuidar das necessidades básicas do adulto. Essas pessoas não querem uma relação, querem uma troca infantil para fugirem de si mesmas”, complementa. 

“E dizer que essa é a única possibilidade, seja aceitando o ‘menos pior’ ou fugindo de toda relação, é não querer se deparar com o desconforto que as mudanças geram. Porque, para repensarmos a forma heterossexual de se relacionar, precisamos repensar a própria performance de gênero, precisamos repensar o que é ser mulher e o que é ser homem, o que é feminilidade ou masculinidade para além de sinônimos de opressão e dominação, tal como se apresenta hoje. Isso gera crises existenciais individuais e coletivas, visto que precisamos abrir mão das âncoras identitárias que aprendemos até aqui para construirmos novas. É mais fácil culpar o outro e dizer que ele não presta”, aponta. 

No mesmo sentido, Maria Clara defende ser necessário acreditar na possibilidade de mudança para que ela aconteça. “Segundo a historiadora Hanne Blank, que escreveu o livro ‘Straight: The Surprisingly Short History of Heterosexuality’, a heterossexualidade enquanto conceito só passou a ser descrita como tal em 1868, quando a palavra foi registrada pela primeira vez. Károly Mária Kertbeny, um jornalista austro-húngaro, cunhou tanto o termo ‘heterossexual’ quanto ‘homossexual’ para protestar contra as leis que proibiam a sodomia na Alemanha.  Ou seja, até então, a definição se limitava ao ato sexual, e não ao participante. Tampouco significava uma identidade cultural”, lembra a autora, que arremata: “Se a heterossexualidade é uma cultura, e a cultura é mutável, quer dizer que há esperança”.

A escritora ainda adverte que o problema não será resolvido se não for enfrentado e que outras maneiras de lidar com essa questão podem ser também nocivas. “Eu sou uma boa leitora de estudos de gênero, portanto sei que embora a sexualidade seja fluida, tampouco é uma escolha racional. Seresin mesmo admite em seu texto que o lesbianismo político que fora moda durante o feminismo dos anos setenta hoje é considerado uma opção um tanto datada”, escreve.

Fora do script 

Juliana Benfica acredita que construir relacionamentos para além da caixinha da heteronormatividade pode ser um caminho para superar o heteropessimismo. “Pensar relações com crescimento mútuo, e não com papéis de gênero definidos de forma disfuncional, afinal, toda relação em que há desigualdade de poder só se sustenta com violência ou ameaça de violência”, sustenta a psicóloga.  

Para ela, homens precisam aprender a lidar com a potência feminina, e mulheres precisam aprender a responsabilizar homens pelos seus atos e parar de aceitar violência para manter relações. “Precisamos parar de normalizar a ideia de que todo homem trai, mente e é irresponsável, que isso é coisa de homem, ou que toda mulher cuida, é paciente e muda homens. A feminilidade e a masculinidade precisam ser entendidas como plurais, e não hegemônicas. Assim como as relações também se constituem de diversas formas”, adverte. “Precisamos tirar homens e mulheres das caixinhas de que mulheres são o sexo frágil e homens são assim mesmo, acomodando-os na falácia de que eles amadurecem mais tarde e, por isso, podem sobrecarregar mulheres, se implicar pouco nas relações e não se responsabilizar”, conclui.