Diversidade

Mais que acolher, mães e pais de LGBTs 'saem do armário' em defesa dos filhos

Adolescentes homossexuais rejeitados pela família têm até oito vezes mais probabilidade de cometer suicídio


Publicado em 19 de outubro de 2020 | 03:00
 
 
 
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“Mãe sempre sabe”. A máxima, que não é regra, expressa bem a experiência de Patrícia Coacci, 63, que no início dos anos 2000 convocou a família a fazer do lar um porto seguro para seu filho, Thiago, hoje com 31 anos. “Eu venho de uma maternidade muito rica. Tenho um filho que partiu muito jovem, uma filha que não saiu do meu ventre, mas de quem sou mãe por força do coração, e tenho um filho que é gay. Ao lado de meu marido, Klécius, sempre acompanhei de perto o desenvolvimento de cada um, e desde muito cedo nossa intuição já nos mostrava quem eles eram. Ainda criança, o Thiago nos apontava uma forma de estar na vida diferentemente dos irmãos, que são heterossexuais”, cita. Com a clareza de compreender o rebento, foi ela quem buscou estabelecer com ele diálogo, buscando transmitir uma mensagem de compreensão e de segurança. Aos 13 anos, o rapaz pôde falar abertamente da própria sexualidade para sua família, sendo acolhido de pronto.

Thiago tem sorte. Para qualquer indivíduo e também para os LGBTI+, a família, quando se constitui como uma rede de apoio, possibilita a construção de relações de vínculo capazes de promover bem-estar, saúde e qualidade de vida. Trata-se de um arranjo que pode trazer melhorias para a autoestima e conferir, no caso da comunidade queer, uma sensação de proteção ou de refúgio contra a LGBTIfobia. Não por acaso, não ser aceito por suas famílias é o maior problema para um em cada quatro homens gays, conforme indica a pesquisa “Growing Up LGBT in America”, da Organização Não Governamental (ONG) norte-americana de defesa dos direitos civis Human Rights Campaign.

Relatos ouvidos por O TEMPO e pesquisas nacionais e internacionais evidenciam o óbvio: para um grupo de pessoas que precisa cotidianamente desafiar o preconceito social, o apoio da família é visto, desde o primeiro momento, como algo precioso, mas também como um privilégio de poucos. Diferentemente do aconchego que Thiago Coacci encontrou em sua família, a verdade é que LGBTI+, na maioria das vezes, precisam lidar desde muito cedo com episódios de intolerância em suas próprias casas. Motivo pelo qual muitos relutam em “sair do armário”. Outros, ao tomar coragem de afirmar a própria identidade, encontram no seio familiar um ambiente marcado pela incompreensão, pela sabotagem e até pela violência. 

As formas de rejeição são diversas  como o silenciamento e a deslegitimação da orientação sexual, além da agressão física e/ou psicológica. Certo mesmo é que, hoje, ainda é difícil encontrar LGBTI+ que não atravessaram, em alguma medida, momentos em que se sentiram indesejados.

Muitas vezes, familiares pressionam LGBTI+ a não falarem de sua sexualidade

Hostilidade foi o que experimentou a capixaba Luana*, 17, que foi confrontada por sua mãe quando, neste ano, decidiu falar abertamente sobre sua sexualidade estimulada por diversas manifestações que via nas redes sociais em razão do Dia Internacional Contra LGBTIfobia. Ela relata que, ao se assumir bissexual por meio de uma publicação no Instagram, sentiu como se desfizesse de um fardo e pudesse, pela primeira vez, dizer da sua identidade. A sensação de liberdade durou pouco. Rapidamente – e tomada de raiva – sua mãe foi ao encontro dela e inquiriu: “Seu namorado sabe disso? Ele aceita isso? Ele tem família! O que eles vão pensar? Você imaginou que sua avó vai ficar sabendo disso?”.

Apesar das exigências de que o post fosse apagado, a estudante resistiu. “Então minha mãe chutou um móvel e falou coisas horríveis. Ficou se perguntando onde é que ela havia errado. Pensei que fosse me agredir”, lamenta. Luana, então, foi expulsa de casa e precisou passar a viver com seu irmão. Desde então, ela tem sido apoiada por amigos e pelo namorado. Mas, obviamente, ficou abalada. “Eu já tive outros ataques de ansiedade, quando, naqueles dias, não conseguia parar de chorar. Muitas vezes, sinto vontade de me machucar”, conta.

Como o relato de Luana sugere, essa rejeição pode ter repercussão para o bem-estar e para a saúde mental e emocional desses jovens  conforme evidenciam pesquisas recentes.

Citado no artigo “Violência familiar contra adolescentes e jovens gays e lésbicas: um estudo qualitativo”, publicado pela Revista Brasileira de Enfermagem em 2017, um estudo realizado com 224 jovens norte-americanos, por exemplo, buscou compreender as consequências na saúde das reações familiares frente à orientação sexual e expressão de gênero de seus filhos durante a adolescência. A conclusão é que efeitos adversos, punitivos e traumáticos frente à revelação da homossexualidade colaboraram para que os adolescentes homossexuais tivessem oito vezes mais probabilidades de tentativa de suicídio, seis vezes mais probabilidade de terem depressão, três vezes mais propensão a usarem drogas ilegais e três vezes mais probabilidade de terem uma relação sexual desprotegida em comparação com adolescentes homossexuais que não foram rejeitados.

Para apoiar filhos, famílias ‘saem do armário’

O receio de jovens LGBTI+ em abrir diálogo com seus pais (ou com outros tutores) e a frequente sensação de culpa por “frustrar” as expectativas da família têm sua razão de ser. A heterossexualidade, afinal, é vista como compulsória – é como se fosse algo mais “normal” e, portanto, mais desejado. Uma ideia que, apesar das correntes mudanças socioculturais, persiste. É o que indicam estudos como o levantamento global da Associação Internacional de Gays e Lésbicas, realizado em 2016, que revelou que pelo menos dois terços das pessoas não desejariam ter um filho gay.

Diante dessa realidade, Patrícia e Klécius Coacci se deram conta de que o apoio restrito ao ambiente doméstico significaria pouco diante do que poderiam fazer por Thiago. “Nosso filho nos ensinou que nós também precisávamos ‘sair do armário’. Que com ele já estava tudo bem. Nós é que ainda não tínhamos conseguido lidar com essa questão”, lembra. Com o tempo, ficava cada vez mais sensível que, ao deixar de falar abertamente sobre a experiência do rapaz, a história dele parecia ser constantemente anulada em diversas dimensões da vida em sociedade. Assim, tão logo percebeu esse fenômeno, Patrícia buscou quebrar esse ciclo de invisibilidade.

“Passamos a falar, com orgulho, sobre ele e sobre o que ele estava passando para parentes mais distantes, no ambiente de trabalho ou mesmo na paróquia que a gente frequenta, pois somos católicos”, lembra, observando que, na verdade, só estava repetindo o que outros pais fazem com naturalidade: “Os filhos estão sempre presentes nas conversas dos pais. Nós comentamos sobre os namoros deles, sobre o que gostam de fazer, sobre a carreira deles. Por ele ser gay, deveríamos deixar de participar dessas conversas?”, questiona, expondo que, ao mesmo tempo, a família foi adotando uma postura mais enfática e combativa quanto à defesa dos direitos, da honra e da dignidade de pessoas LGBTI+.

O efeito foi imediato. Rapidamente, Patrícia passou a ser consultada por outras famílias e sentiu que diversas pessoas gostariam de ouvir mais sobre a experiência da descoberta de ter um filho LGBTI. “No início, nós também não sabíamos como lidar com a sexualidade dele, não sabíamos como seria a vivência de um homem gay em sociedade. A gente só conhecia a realidade por meio de piadas e do preconceito, da covardia e da maledicência do mundo. É assim que muitas pessoas que falam comigo se sentem também”, observa.

Em 2016, O TEMPO publicou uma reportagem especial sobre as mães que são apoio para os filhos LGBTI. Assista ao vídeo com os depoimentos:

Em Minas, coletivo Mães pela Liberdade promove ações em apoio às famílias das comunidades LGBTI+

Hoje, para apoiar outras famílias que buscam formas de dar suporte para filhos LGBTI+, Patrícia Coacci faz parte do núcleo de acolhimento do coletivo Mães pela Liberdade, que tem operações em cidades-polo de Minas Gerais. Em Belo Horizonte, o grupo fazia atendimentos nas quintas-feiras e sábados no Centro de Referência da Juventude (CRJ), localizado nas adjacências da praça da Estação, no centro da capital. Com a pandemia, esse formato de acolhimento foi suspenso e o grupo passou a realizar operações também online. “É um formato que vamos manter, porque conseguimos chegar a mais pessoas. Além disso, a internet possibilita mais flexibilidade. Conseguimos marcar encontros em qualquer dia ou horário, a depender do que for melhor para quem está nos procurando”, pontua. 

“A grande maioria das pessoas que nos buscam demonstram medo das violências que seus filhos estão sujeitos a sofrer por conta da orientação sexual deles”, relata, citando que questões religiosas também são comuns. “O objetivo desses encontros não é entregar um guia ou dar uma aula. É apenas trocar experiências. Assim, construímos uma unidade”, diz.

Primeira conversa sobre sexualidade com a família fica gravada na memória dos jovens LGBTI+

Ainda que aconteçam em cada família à sua maneira, a primeira conversa entre tutores e filhos em que se fala abertamente sobre a sexualidade tem em comum o fato de essas histórias ficarem, normalmente, gravadas na memória dos jovens LGBTI+. Exemplo disso é flagrante na reação do comunicador João Alves, 27, que, ao rememorar a ocasião em que se assumiu gay para a família, sente outra vez aquelas mesmas sensações de então. “Não imaginava que voltar a falar disso me deixaria tão nervoso, mas nervoso em um sentido bom”, admite ao final da conversa com a reportagem.

No caso dele, a notícia de que se identificava como um membro da comunidade LGBTI causou surpresa, pois o rapaz vinha de uma trajetória heteronormativa, em que havia namorado mulheres e não manifestava publicamente desejo por pessoas do mesmo gênero. “Primeiro, veio o espanto. Depois, o silêncio. Por fim, vieram algumas perguntas. Fui questionado se tinha certeza, advertido que poderia ser apenas uma fase”, lembra Alves, que foi firme: “Eu respondi que aquela conversa era fruto de muita reflexão, que eu tinha certeza e que não teria mais nenhuma amarra se ela, a minha mãe, pudesse caminhar comigo”. 

Dias depois, sua genitora voltou a falar com ele, demonstrando que queria estar sempre acessível ao filho e reconhecendo que sentia medo pelo que o rapaz poderia vir a sofrer em razão de sua orientação sexual. Justamente por essa razão, “estabelecer esse diálogo era necessário. Foi a partir dali que busquei forças para enfrentar tudo o que viria pela frente a partir de então”, conta.

Ouvir genuinamente é essencial para que a conversa sobre a sexualidade aconteça de maneira confortável

O episódio vivenciado por João Alves atende ao que o psicólogo Samuel Silva, especializado no atendimento ao público LGBTI+, cita como estratégico para tornar mais confortável essa a primeira conversa sobre a sexualidade. Uma dica, diz, é basear esse diálogo em três elementos fundamentais: ouvir genuinamente, respeitar e se posicionar como ponto de apoio.

“Ouvir genuinamente significa está aberto a de fato escutar o que a pessoa LGBTI+ tem a dizer, sem julgamentos ou contrapor rispidamente o que é dito”, informa. “Respeitar é o complemento dessa escuta, ou seja, é acolher aquela informação compreendendo que a pessoa tem todo direito a sentir, pensar e agir daquela forma. É também respeitar o ritmo de cada um: nem todos vão se expressar ou se assumir tão rápida ou objetivamente como se espera. Às vezes é necessário um tempo de elaboração maior para estar confortável com esse passo”, complementa o psicólogo.

E, por fim, “se posicionar como ponto de apoio talvez seja o principal elemento que nós, pessoas LGBTI+, esperamos encontrar”, garante. Silva alerta: “A LGBTIfobia cria um pânico real de que, ao nos assumirmos, perderemos o afeto, o contato, o cuidado e o respeito de pessoas que são fundamentais na nossa vida, como mães, pais e demais familiares. Assim, em um diálogo saudável sobre a orientação sexual e gênero de filhas e filhos é fundamental ressaltar que independente de qualquer coisa, a relação de amor e proteção familiar continuará existindo”.

Se esses elementos estão garantidos, Silva salienta que a conversa pode acontecer tanto presencialmente quanto virtualmente. “As redes sociais hoje não são mais uma extensão da vida, elas são parte constituinte da vida em si. Assim, as regras para um diálogo saudável são as mesmas em ambos espaços”, argumenta ele, que traz ainda uma dica bônus aos pais de adolescentes e jovens que buscam meios de estabelecer diálogo com seus filhos: “Introduza o assunto aos poucos. Muitas vezes estamos tão angustiados que queremos abordar todas as nuances e complexidades da questão num único momento. Não faça isso. Lembre-se de respeitar o ritmo da sua filha ou filho e seu próprio ritmo. A orientação sexual e o gênero fazem parte da identidade da pessoa e a acompanharão pela vida toda. Existirão inúmeros e importantes momentos ao longo do tempo para que sejam abordados”.

Tempo pode ser fator importante para o acolhimento pleno

Assim como João Alves, o publicitário Gustavo Cândido dos Santos, 24, também tem lembranças vívidas de quando se assumiu gay para a família. Em entrevista, ele rememorou como um momento árido de sua biografia levou, depois, à construção de uma relação mais saudável com seus pais. 

“Eu nasci dentro da religião Testemunhas de Jeová e sempre fui muito participante. Ao mesmo tempo, desde criança, sempre soube que era gay. Conviver com essas duas dimensões ao mesmo tempo deixava tudo mais difícil”, lembra. Tudo ficou mais confuso quando, aos 19 anos, passou a levar uma vida dupla. “Conheci um rapaz e começamos a namorar. Eu saia com ele em segredo e, depois, ia para a igreja”, recorda. Com a situação já beirando o insustentável, Santos decidiu “abrir o jogo”.

“Falei com meus pais sobre como lutei contra (a própria sexualidade), sobre como me sentia nesses anos todos. Foi difícil. Era como se tivesse morrido para eles. O filho ‘perfeito’ deles não existia mais”, revela. Muito atuante na igreja, precisou ainda prestar contas aos religiosos e, depois, foi se afastando de todos. “Foi rejeição atrás de rejeição. Me senti péssimo, e muito culpado”, cita.

Com o tempo, as coisas foram se acertando. “Meus pais foram vendo como eu segui minha vida, perceberam que nada daquilo que estava no imaginário deles aconteceu. A relação foi sendo reconstruída dia após dia até que, no ano passado, depois de três anos dessa primeira conversa, um ex-namorado foi recebido na minha casa, jantou com meu pai  ele que, apesar de ser um homem muito tranquilo, tinha chegado a dizer que não sabia o que faria se me visse na rua com outro homem”, relata. “É bom olhar para trás e ver onde cheguei”, conclui, cheio de orgulho.

No Brasil, violência contra LGBTI+ começa em casa

Mesmo que sejam fartos os relatos de pessoas que, apesar dos contratempos, se sentem orgulhosas em afirmarem suas identidades, nem todos LGBTI+ vão vivenciar essa experiência por se sentirem inseguros demais para falar sobre a própria sexualidade para as suas famílias. A psicóloga Adriana Roque sinaliza que não são poucos os que, por medo, pulam essa etapa. “São pessoas que sentem que não têm espaço em suas casas e, por isso, vão viver suas histórias depois que saem da casa dos pais e passam a ter mais autonomia”, comenta.

De fato, a evidências de que os lares são, em boa parte, lugares hostis à diversidade. Para se ter uma ideia, entre as pessoas que se sentiram discriminadas por causa de sua orientação sexual, 11% lidaram com o preconceito pela primeira vez por meio de manifestações de familiares. Para 10%, os pais foram a fonte primária de discriminação. Os índices foram levantados pela Fundação Perseu Abramo em 2011. “São dados que reiteram outras pesquisas realizadas em diversas capitais brasileiras durante as paradas LGBT, nas quais família e escola se revezam como o primeiro e o segundo pior espaço de discriminação homofóbica”, informa o artigo “Homofobia, hierarquização e humilhação social” publicado no livro “Diversidade sexual e homofobia no Brasil”.

Jovens que estejam passando por essas situações podem e devem buscar ajuda, alerta o psicólogo Samuel Silva. A ajuda pode vir de outros LGBTI+, de amigos e de outros familiares que possam oferecer suporte a esses indivíduos. “A internet, inclusive, pode ser uma ferramenta importante”, comenta, lembrando que o atendimento psicológico pode ser um espaço ético e profissional de acolhimento. O apoio pode vir também do campo do legal. “Não podemos esquecer que a LGBTIfobia é crime no Brasil. Portanto, pessoas LGBTI+ estão amparadas legalmente”, finaliza.

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