Sucesso retumbante e já com a próxima temporada confirmada, a série original da Netflix “Bridgerton”, criada por Chris Van Dusen e produzida por Shonda Rhimes, alcançou o posto de mais vista em toda a história do canal de streaming: em um mês, a produção foi assistida em cerca de 82 milhões de lares, recorde que foi comemorado nas redes sociais, na última quarta-feira. Romance de época ambientado na Londres do começo do século XIX e que acompanha o competitivo mundo da alta sociedade da Regência Britânica, a obra se diferencia de outras montagens que orbitam o mesmo universo ao apostar na diversidade de elenco. Característica, aliás, que vem sendo apontada por críticos como uma das qualidades mais rapidamente percebidas na série, em que atores negros interpretam desde trabalhadores a membros da aristocracia inglesa.
DUQUE, CHEGA AQUI NO DIDIDIDIÊ pra comemorar que Bridgerton é a maior série da história. pic.twitter.com/qjzvrKudCG
— netflixbrasil (@NetflixBrasil) January 28, 2021
Funciona como principal eixo da trama a complicada história de amor entre Simon Basset, o duque de Hastings, um homem negro interpretado por Regé-Jean Page, e Daphne Bridgerton, uma mulher branca, vivida pela atriz Phoebe Dynevor, que é a filha mais velha de uma família rica e aristocrática. Diferentemente do que o senso comum esperaria, não são questões raciais que impõem, diretamente, desafios ao casal. Pelo contrário: em momento algum, em toda a série, o desenho de uma nobreza multirracial causa estranhamento aos personagens. Mesmo assim, há preocupação em explicar o fenômeno ao espectador, ainda que sem pressa.
O contexto do advento de uma nobreza negra é exposto no quarto episódio, quando Lady Danbury, representada por Adjoa Andoh, uma mulher negra, diz ao duque de Hastings, seu protegido: “Éramos duas sociedades separadas, divididas por cor, até que um rei se apaixonou por uma de nós”. Ele, no entanto, rebate, lembrando a fragilidade daquela condição: bastaria que o rei, um homem branco, derrubasse seus títulos de nobreza. A consciência da própria negritude é um dos aspectos elogiados pela ativista e acadêmica Salamishah Tillet, que escreveu uma elogiosa crítica à obra no jornal norte-americano “The New York Times”. Por outro lado, ela aponta que “Bridgerton” peca ao não racializar também os personagens brancos. O problema também é destacado por Jackeline Nunes, curadora da Mostra de Cinema Negro de Pelotas (RS), que neste 2021 completa cinco anos em atividade.
“A gente ainda vive um momento em que as pessoas brancas ocupam um lugar de neutralidade, por isso é muito difícil que essas pessoas, em uma narrativa, sejam racializadas. Mas esse é um ponto-chave para começar a desconstruir o lugar de uma branquitude pretensamente neutra, ignorando que a construção dessa identidade vem de um lugar de exploração de outras identidades”, sinaliza a curadora.
Observações amenas da dinâmica racial
Outro aspecto no qual é necessário se deter diz da consciência de que a série não se propõe a ser um retrato histórico de uma época, mas, ao contrário, de pensar outros imaginários possíveis. “A história tende a apagar as narrativas de pessoas negras, da revolução e da resistência à opressão que sempre existiu. Apesar de ser importante ter consciência do que estava acontecendo, a trama faz um recorte dentro da nobreza e não se aprofunda no assunto”, pontua Jackeline Nunes, fazendo menção ao movimento abolicionista que fervilhava na Londres de meados do século XIX.
Contudo, mesmo se distanciando desses eventos históricos, “Bridgerton” faz sutis observações da dinâmica racial. “A série mostra o pai do duque como um carrasco, que exige que ele seja excepcional. É algo que reflete uma realidade em que as pessoas negras sempre tiveram exigência muito maior sobre seus corpos, se esforçando o dobro para, muitas vezes, ter a metade”, analisa Jackeline, que reconhece ter assistido à produção de forma despretensiosa. “Eu não tinha lido nada antes. Então, para mim, foi uma surpresa (a escolha de um elenco multirracial), o que, ao longo da série, continuou sendo bem agradável”, observa.
De uma perspectiva crítica, a curadora da Mostra de Pelotas admite: “Depois dessa primeira impressão positiva, eu tive o receio de os personagens negros estarem ali para criar fachada de representatividade, mas não foi o que aconteceu. Eles estão localizados em pontos essenciais da história, que aprofundam o debate, e existe um contexto para aquela realidade existir: uma rainha que toma posse para levantar outros pretos, caso da linhagem (do ducado) de Hastings”, observa.
Além das figuras nobres, que circulam com toda pompa em cenários exuberantes e usando trajes extravagantemente luxuosos, Jackeline lembra que a diversidade se estende a outros núcleos. “A Marina (Thompson, vivida por Ruby Barker), por exemplo, que está em outra casta, impõem outros debates sobre ser uma mulher negra mesmo nos dias atuais. Vemos que ela é desejada por aquela sociedade, mas, ao mesmo tempo, é tratada como objeto e até como um problema para uma família branca”, acrescenta.
Shondaland
No jornal “The New York Times”, Salamishah Tillet lembra: não é a primeira vez que a premiada produtora Shonda Rhimes – nome por trás de sucessos como o seriado médico “Grey’s Anatomy” – escala um elenco colorido em um romance de época. Assim como em “Bridgerton”, um casal formado por uma pessoa negra e uma pessoa branca protagoniza “Still Star-Crossed”, de 2017, que também se passa no Reino Unido do tempo da Regência. Mas, diferentemente de agora, a produção anterior se absteve de tecer comentários sociais relacionados a questões raciais.
“Em contraste, os personagens de ‘Bridgerton’ jamais parecem esquecer que são negros, mas entendem esse fato como uma das muitas facetas de sua identidade e continuam a prosperar na sociedade inglesa da era da regência. O sucesso da série prova que as pessoas não brancas não precisam ser excluídas ou existir apenas como vítimas do racismo, a fim de garantir o sucesso de um drama de época britânico”, anota Salamishah.
No mesmo sentido, Jackeline Nunes fala em um potencial legado que a produção pode deixar: “Já existe uma consciência mais ou menos estabelecida entre quem realiza e faz cinema de que não se comporta mais essa ideia de uma pureza branca, em que pessoas negras não existem nas histórias ou estão para trás, ocupando papéis secundários ou muito caricatos”. Ela pondera que esse movimento ainda não era percebido em em dramas de época, fundamentalmente naqueles que giram em torno de temas como a realeza. “É algo importante em um momento em que estamos pensando em novos lugares de representação”, assinala.
A escolha também agradou Julia Quinn, autora dos livros que inspiraram o original da Netflix. Em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”, ela comentou a mudança de cor de alguns personagens e se disse positivamente surpresa. “Acho que parte dos motivos para a série ter se tornado tão popular é que ninguém tinha feito algo para a TV dessa forma”, avalia a escritora, que viu a obra literária “O Duque e Eu”, lançada no ano 2000, escalar e figurar por semanas na lista de mais vendidas de diversos países – inclusive no Brasil.
“Sou grata por terem usado meu livro nesse projeto. As pessoas falam muito do elenco diverso, mas por trás das câmeras também havia variedade de cores, gêneros e orientações sexuais. Eu sou apenas eu, uma pessoa, é a mais diversa que posso ser. Mas esse grupo me ajudou a tornar o que escrevi algo maior e mais colorido”, garantiu Julia na entrevista.
Maratona. De tão envolvida com a trama, a pedagoga Simone Santos, que é ativista do movimento negro, maratonou os oito episódios de “Bridgerton” em um só fim de semana. “Achei até curta”, comenta, já na expectativa pela próxima temporada. Sobretudo, e em consonância com o apontamento de críticos, ela gostou da forma como a produção propõe um outro olhar para personagens negros mesmo em uma história de época.
“Para mim, ver essas outras representações, saindo daquele lugar de ser visto como subalterno, foi uma experiência interessante, que mexe com o imaginário”, pontua. Ela assevera ser fundamental ter em mente que, no momento histórico em que a história se passa, o Reino Unido se valia de mão de obra negra escravizada. “Claro que não podemos ceder a qualquer ideia de revisionismo histórico, como se a nobreza fosse de fato acolher a negritude. Não é disso que se trata”, salienta.
Poderosa. A Rainha Charlotte, interpretada por Golda Rosheuvel, é inspirada em uma mulher que existiu na vida real e que estudiosos indicam ter descendência africana. A personagem, entretanto, não faz parte dos livros de Julia Quinn.
Fenômeno. Além de ser o maior sucesso da história da Netflix, tendo sido assistida por 82 milhões de casas em seus primeiros 28 dias, “Bridgerton” chegou ao top 10 em todos os países, exceto o Japão, atingindo o primeiro lugar em 83 nações.