As memórias de antigamente, e não são poucas, estão vincadas em seu rosto e seu corpo. A mente começa a esfumar os registros de outrora. E antes que tudo caia no esquecimento, veio a ideia do livro “A Mística dos Encantados”, que traz a história de luta, resiliência e total entrega de Maria Moura dos Santos, 85, chamada de Maria Toinha, ao chamamento dos encantados, seres também conhecidos como caboclos, cavaleiros, curadores, mensageiros e mestres.
Maria, mulher negra, retirante, mãe de santo, agricultora, pescadora e empregada doméstica, nasceu em 1936, na Lagoa de Beber, antiga comunidade de Paraipaba, no Ceará.
Sentada na rede em sua casa ao lado do neto Marcos Andrade Alves dos Santos, 24, poeta, escritor, pesquisador e mestrando em sociologia, ela foi resgatando miudezas perdidas nos recônditos do seu ser e narrando para seu neto. Assim, avó e neto materializam um desejo: que o antigamente não acabe em poeira.
Maria Toinha autorizou que Marcos contasse sua história como se fosse ela e preenchesse seus lapsos de memória. E assim foi feito. “Sua memória já carecia de ajustes por causa do tempo e da velhice. Então, ela mesma disse que eu poderia imaginar quando ela estivesse cansada e quando as palavras fugissem de sua boca’, comenta o escritor.
O livro traz o universo mágico e religioso da umbanda e a jornada iniciática e espiritual empreendida pela anciã especialmente nas décadas de 50 e 60, desde que se descobriu médium, aos 16 anos, e viajou para o terreiro de Antonio de Mel em Paracuru onde pode se desenvolver e aprender um pouco mais sobre o percurso da mãe de santo até abrir seu próprio terreiro.
“Minha avó é o descomeço da estória do antigamente. Fui criado por ela e escrevi este livro porque tive medo de que, quando ela se despregasse do corpo e ele padecesse, as estórias gravadas nele não pudessem mais ser escutadas pelos que ficariam”, relata Marcos.
“Estava cansada de guardar sozinha muitas coisas e não quis fazer como os outros guardiões que já se foram, que chamo respeitosamente de ‘finados’. Eles não contaram. Preservaram apenas para si nossas experiências e quando seus corpos tombaram levaram consigo tudo de valioso. Enterraram nossos tesouros”, ressalta Maria.
Por meio de uma narrativa poética, Marcos cria uma gramática encantada a partir das experiências e percepções de sua avó.
“Diziam que eu era médium. Trabalhei até agora. Parei porque fiquei velha. Passei por muita coisa, mas resisti com a força dos meus encantados. Se houver precisão, ainda sou Maria para chamar meus curadores e fazer o que for preciso. Confio em Deus, primeiramente, e nos meus encantados”, comenta a mãe de santo.
Para Gérson Augusto de Oliveira Júnior, antropólogo e professor da Universidade Estadual do Ceará e que prefacia o livro, Maria Toinha “continua sua jornada conversando e aprendendo com espíritos luminosos que visitam o presente trazendo recados do passado e descortinando o futuro. Sabe que suas vivências foram traçadas pelo destino”.
A jornalista Ana Elizabeth Diniz escreve neste espaço às terças-feiras. E-mail: anabethdiniz@gmail.com
“Continuem a falar de mim como finada”
Maria Moura dos Santos comenta que já refez de muitas maneiras as estradas que a conduzem ao antigamente. “Carrego no peito a certeza de que vivi e de que muito vivi, embora ainda queira algumas coisas desta vida, como agora, ao relatar o que aconteceu. Meu corpo está marcado pelos mistérios daqueles que renascem a cada pôr do sol e que se descomeçam em vento quando os galos cantam anunciando a chegada da aurora”, diz.
Sentada no quintal de sua casa, rememorado tempos distantes, sua relação com os encantados, com seu guia Capacete de Pena e com Antônio de Mel, a quem considera um pai, Maria conta que “a ambição verdadeira de todo espírito consiste na luz, embora muitos se percam desse belo querer, especialmente quando a escuridão se disfarça em luz e cresce dentro de nós”. “Nós também somos como os dias. Possuímos a mesma exatidão inexata. Morremos para renascer. Por isso não quero deixar esse legado morrer em minha carne, como fizeram os outros. Depois que partir, quero que alguém continue a falar de mim como uma finada”, deseja a anciã. (AED)
Encantados ajudam a tecer a existência
Ainda muito jovem, Maria Toinha descobriu a mediunidade. “Meu destino se revelou antes que eu tomasse consciência da profundidade do mundo. Descobri-me filha dos encantados. Eles me protegem dentro do dia e no correr da noite, dentro das matas e nas lagoas. Os encantados me ajudam a tecer uma existência com fios que se estiram desde o antigamente e que se entrelaçam de modos por vezes difíceis de ler”, explica.
A mãe de santo revela que foram os mistérios dos encantados que a transformaram em caminhante. “Fazer o bem, mas não num lugar à espera do outros, à espera de ser encontrada por quem sofria. Não. Meu destino consistia em ganhar o mundo e descobrir aqueles que sofriam, oferecer-lhes ajuda, curar-lhes na mística dos cavaleiros de luz. Eu tinha de descaminhar abrindo veredas pelo mundo, criando passagens, encontros, despedidas”, relembra. (AED)
“A Mística dos Encantados”
Maria de Moura dos Santos e Marcos Andrade Alves dos Santos
Editora Edições e Publicações
208 páginas
R$ 48,90
O livro pode ser adquirido no link:
https://clubedeautores.com.br/livro/a-mistica-dos-encantados-4 ou pelo e-mail: marcos.andrade@aluno.uece.br.