Um caderno, geralmente de caráter íntimo, onde se fazem anotações que contêm uma narrativa manuscrita – geralmente diária – de experiências pessoais, organizada pela data de entrada das informações. A definição da Wikipédia para o verbete “diário” é precisa no que tange ao propósito mais imediato de um hábito que, mesmo já tendo tido dias de mais popularidade, ainda arrebanha adeptos – e dos mais diferentes perfis. 

No entanto, sob essa camada descritiva, há outras intangíveis, que vêm sendo, inclusive, alvo de estudos, lembra a psicanalista Maria Rachel Oliveira, nome à frente do projeto Terapia da Palavra, que, em suas oficinas sobre escrita criativa, costuma abordar o tema. Ela cita, por exemplo, uma pesquisa da Universidade de Iowa, publicada pela revista “Advances in Psychiatric Treatment”, segundo a qual indivíduos que escreveram sobre eventos traumáticos, situações de estresse ou outra situação que tenha feito aflorar mais fortemente suas emoções durante 15 a 20 minutos, de três a cinco vezes por semana, conseguiram superar tais acontecimentos com mais facilidade do que os que não tiveram essa atitude. “O benefício foi ainda maior em pessoas que sofriam de doenças graves, como câncer. Um centro de terapia chegou a adotar o uso de diários como prática auxiliar no tratamento da saúde mental. Além disso, a escrita diminui sintomas de depressão, ansiedade, pânico e abuso de substâncias – inclusive as proibidas”, lembra ela. Além do estudo de Iowa, Maria Rachel frisa que várias outras pesquisas já enfatizaram a importância da escrita para expressar angústias. “E se você não quer (ao menos em dado momento) mostrar para ninguém, o diário parece uma solução ótima”, argumenta. 

Ela faz uma comparação da prática dos diários com blogs e mesmo redes sociais, mas pontua: “O problema, a meu ver, é que tudo ficou líquido, como bem sintetizou (Zygmunt) Bauman, e as experiências não são mais vividas, e sim mostradas. Já o diário tem o poder de ajudar a pessoa a tomar posse da própria experiência, seria mais como ela prestando contas a si própria”.

A psicóloga Noemi Gelape Andrade Soares concorda. “Ter um diário é uma maneira de elaboração tanto das questões emocionais quanto das profissionais. É uma fotografia escrita, uma memória, a sua história de vida”, pontua ela, que também não se furta a tecer um paralelo com o “diário virtual” representado pelas redes sociais: “Afinal, as pessoas postam o que fazem. Mas com certeza não se compara a um diário escrito, mais íntimo, mais condizente ao que realmente se é”.

Noemi também ressalta o hábito do diário como um mecanismo de apoio a momentos traumáticos, o que considera “como uma elaboração e também como uma forma de superação”. “Há, ainda, o diário reflexivo, aquele que você escreve, depois descobre e escreve de novo e de novo, até chegar ao cerne da dor. Tem os dos grandes momentos... Todos esses são os esporádicos. Quem tem necessidade de escrever diariamente é uma outra forma, mas, de qualquer maneira, escrever é sempre enriquecedor”.

A escritora e palestrante Cris Guerra conhece bem os benefícios da prática. “Devo minha vida a ele”, diz sobre o hábito, que anos atrás a tornou conhecida, ao dar início ao blog Para Francisco, em 2007. “Na verdade, sempre escrevi muito. Era a filha mais nova, tinha um temperamento difícil, então escrever era uma forma de existir”, diz ela, acrescentando que escrevia em cadernos físicos até a gravidez do filho, Francisco, hoje com 12 anos. “Portanto, parei mais ou menos há 13”. 

Na gravidez, ela se viu repentinamente viúva do parceiro, Guilherme. E deu início ao Para Francisco, no qual escrevia para o filho saber mais do pai, que não chegou a conhecer. “Ter um interlocutor (o rebento) foi a chave para me tornar escritora. Ali, era uma escrita mais comprometida. E uma mágica aconteceu. Não parei mais”, diz ela, que já escreveu para várias publicações. O blog ficou ativo por quase quatro anos. 

 

O benefício do encontro 
– inclusive, consigo mesmo

Hoje, a publicitária Mariana Rosa mantém para si apenas um diário de anotações, com pensamentos, poemas, tarefas. “Carrego para todo lado. Também listo o que quero fazer por mim, como um estímulo ao autocuidado”, completa. Na verdade, Mariana tornou-se conhecida pelo “Diário da Mãe da Alice”, criado em 2014, para elaborar e compartilhar a experiência de ser mãe de uma criança com síndrome de West. “À época, escrevia todo dia. Alice tinha saído da UTI após cinco meses de internação. Foi um período duríssimo, e eu precisava elaborar minha maternidade, meus medos e todo o mundo novo que se apresentava sob a ótica da deficiência”, lembra. 

Com o tempo, a necessidade de ser “diário” diminuiu. “Foi como se a poeira tivesse baixado, e eu não tivesse a urgência de sobreviver a cada dia. Pudesse, enfim, apreciar cada experiência no seu tempo e escrever quando aquilo criava alguma latência, positiva ou não”, conta. Hoje, com o blog ativo e milhares de seguidores, Mariana vê como principal benefício da escrita os encontros. “Primeiro, comigo mesma, com meus medos e minhas alegrias, aspectos que desconhecia, outros que foram reafirmados. Depois, com outras pessoas, às centenas. Sobretudo mulheres e mães. Esses encontros são fonte de energia e de aprendizado permanentes”, afiança. 

A escrita também lhe rendeu um livro, homônimo: “me conferiu uma voz que pensava ser solitária, mas, na verdade, era solidária a muitas outras famílias de crianças com deficiência”. Não por outro motivo, ela afirma: “A escrita é meu jeito de estar no mundo, de transformar o mundo, sem dúvida”.

A coach Natália Rosin concorda: “Escrever é uma ferramenta muito poderosa de autoconhecimento e autodesenvolvimento. Hoje, muita gente está vivendo totalmente no automático, e um hábito simples, como começar a escrever sobre você, se fazer perguntas (mesmo que ainda não saiba as respostas), expressar pensamentos e sentimentos, colocar no papel o que quer para a vida e também as coisas pelas quais se é grato, pode transformar por completo a sua vida, ser o início de uma jornada de realização e encontro consigo mesmo”. (PC)

O prazer de escolher o caderno e a caneta

O que seria inclusive da história sem o compartilhamento de palavras originalmente registradas em diários? Sejam de Anne Frank, Frida Kahlo, Che Guevara, Sylvia Plath, Susan Sontag e tantos outros. Na seara da ficção, autores como a italiana Susanna Tamaro, do best-seller “Vá Aonde Seu Coração Mandar”, deram vazão a seu veio criativo pelo uso de um esquema de diário como condutor da narrativa.

O escritor Felipe Charbel é um dos adeptos do hábito. “E sou bem assíduo”, vai logo avisando. Detalhe: ele sempre escreveu à mão. “Na verdade, um dos meus maiores prazeres (em manter o diário) é escolher o melhor caderno, a caneta mais confortável... Escrevo quase todos os dias, nem que seja uma frase que ouvi ou o registro de alguma trivialidade”, detalha. 

Ler diários também figura entre suas atividades. “Aliás, tenho um lugar especial para eles na minha biblioteca. Um dos meus preferidos é o do peruano Julio Ramon Ribeyro – na verdade, me interessa mais que os próprios contos dele. Ele próprio transcreveu, editou. Acho tocante a maneira como descreve a doença (câncer), como seu estilo vai se transformando ao longo dos anos, como anota pequenas situações cotidianas e faz grande literatura com um material que, nas mãos de outro, não daria em nada”, compartilha. 

Em tempo: em 2018, Charbel lançou, pela editora Relicário, o livro “Janelas Irreais: Um Diário de Releituras”. “Na verdade, surgiu como uma brincadeira. Um amigo me pediu um ensaio sobre Roberto Bolaño (escritor chileno, morto em 2003) para um livro que estava organizando, mas não saía nada. Então, ele disse: ‘Escreva um ensaio na forma de diário. Para o diário não existe bloqueio criativo’. Assim o fiz e, durante o processo, veio a ideia de fazer um diário de releituras, de voltar a livros que me fizeram feliz no passado e registrar os efeitos dessa leitura, o que aconteceu comigo durante o processo”, explica. (PC)

 

Relicário afetivo e 
guardião de memórias

A jornalista e escritora Marcia Francisco, 48, ainda guarda alguns diários da adolescência – alguns, com lacre. “Desde os 11 anos tenho cadernos de escrita. Sou uma pessoa que valoriza a memória”, diz ela, que guarda com carinho o diário de uma tia, Dalva, já falecida. Além dessa questão, Marcia conta que, como escritora, o hábito do diário a ajudou a organizar material e ideias. Ela revela que faz anotações até em eventos. “Posso nem olhar depois, mas os fatos acabam ficando registrados na minha memória”, explica. 

Hoje aposentada, a pedagoga Consuelo Aleixo se lembra dos tempos em que sugeria a seus alunos a prática do diário como escrita funcional. “A iniciativa trouxe muito do íntimo de cada um, inclusive de quem silenciava algum tipo de dificuldade e pode, assim, ter ajuda”. Recentemente, ela e a amiga Odette Castro idealizaram o projeto “Seu Querido Diário”, pelo qual histórias particulares, colhidas daqui e acolá, vão ganhar visibilidade por meio de minilivros, que serão espalhados pela cidade. (PC)

Saramago: a alma inteira, entre claros e escuros

A função do escritor é, claro está, escrever. São muitos gêneros e insondáveis obstáculos à espreita. Muitas vezes, porém, eles também cultivam um hábito que nem todos valorizam: a escrita de diários. Caso de José Saramago (1922-2010). Entre 1993 e 1998, o Nobel de Literatura se debruçou sobre “Cadernos de Lanzarote”, cinco diários onde narra, com delicadeza e lirismo, sem deixar a ironia fina e o humor peculiar, episódios do seu dia a dia, bem como críticas literárias e reflexões filosóficas, realçando e deixando claras suas posições éticas e, principalmente, políticas. O sexto caderno, descoberto pela mulher, Pilar del Rio, num computador, acaba de ser publicado pela Companhia da Letras, num box alusivo aos 20 anos do Nobel. 

Os bastidores dos prêmios literários, a luta contra todo e qualquer obscurantismo, impasses, dúvidas e fraquezas...Tudo isso está nos cadernos, escritos em Lanzarote (nas ilhas Canárias, onde viveu até sua morte) ou em suas viagens mundo afora. Para além de um registro histórico e da importância literária, talvez o que torne esses diários especiais seja a dimensão humana vista ali. Neles, enxergamos um homem que se põe diante da sua essência.

Mais que um mero “exercício” da escrita ou um laboratório para os seus romances, Saramago escreve diários como quem conversa consigo – e, de quebra, com os leitores. De maneira informal, mas não menos profunda, com zelo e respeito, se despe, meio que se olha no espelho e, entre claros e escuros, parece gostar do que vê. Cada diário serve bem como um confessionário ou como um divã. 
Blimunda, de “Memorial do Convento”? Os cães Achado, Ardent, Tomarctus, Cão das Lágrimas? Raimundo Benvindo Silva, de “História do Cerco de Lisboa”? O sr. José, de “Todos os Nomes”? 
Sim, ou não, nenhum. Nos diários, o protagonista é um só: ele, de corpo e alma. Como explicou, sobre o lema que regeu seu relato: “Contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia”. (André di Bernardi)