No ano passado, surpreendeu o mundo a velocidade como uma equipe liderada por duas mulheres decifrou o genoma do então desconhecido novo coronavírus. Sob comando das cientistas Jaqueline de Jesus e Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadoras brasileiras levaram apenas 48 horas para decodificar o material genético do organismo celular que fez o mundo parar. Em outras partes do mundo, estudiosos demoravam em média 15 dias para concluir essa mesma investigação. Um feito e tanto que, inicialmente, foi tratado apenas como parte da rotina por elas, que já estavam habituadas a grandes feitos, mas sem que houvesse tanta repercussão. Jaqueline, por exemplo, já havia decodificado o genoma dos vírus que causam a febre amarela e o zika. E Ester atuou na vanguarda da pesquisa sobre HIV no Brasil, nos anos 90.
Décadas atrás, essa seria uma história improvável. “Até a segunda metade do século XX, não se falava sobre a presença feminina na ciência. Embora a gente tenha algumas figuras icônicas que deixaram grandes contribuições, essa não era uma pauta, e essas mulheres que se destacaram eram exceções”, analisa a historiadora e cientista política Regina Helena Alves da Silva. Uma realidade que se reflete em números: até hoje, apenas 4% dos prêmios Nobel foram para as mãos de mulheres.
Contudo, esse cenário começou a se transformar depois da Segunda Guerra Mundial, quando elas passaram a ocupar postos de trabalho fora de casa, avançando sobretudo a partir da década de 60, quando surgem diversos movimentos em defesa da autonomia da mulher e de pautas do feminismo em geral. “E a virada vem mesmo nos anos 2000”, pontua. Essa transformação pode ser percebida nos índices de titulação de novos doutores. Segundo dados fornecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do Ministério da Educação (MEC) e analisados pela reportagem de O TEMPO, o número de homens e mulheres que concluíram doutorado no país se igualou pela primeira vez em 2003. E, a partir do ano seguinte, elas assumiram a dianteira, ampliando cada vez mais a diferença entre os dois grupos. Para se ter uma ideia, entre os que receberam a titulação em 2019, 55% eram doutoras, e 45%, doutores.
“Se for olhar o grau de instrução e a relevância feminina na ciência, a gente deu um salto”, celebra Regina, que é coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias da Universidade Federal de Minas Gerais (CCNM-UFMG) e que foi colaboradora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para a Web (INWEB). Entretanto, ela pondera que a invisibilização do trabalho das mulheres cientistas ainda é uma realidade. “Se é fato que estudamos mais e nos titulamos mais, também é verdade que somos menos vezes financiadas em termos de pesquisa e que há um vácuo em algumas áreas”, lembra. De fato, enquanto nas ciências da vida e da saúde as mulheres são a maioria dos pesquisadores, nas ciências da computação e na matemática elas representam menos de 25% desse universo.
Além disso, “apesar de serem a maioria das pessoas com doutorado em diversas áreas, as mulheres brasileiras não estão tão bem representadas nos níveis mais altos da carreira”, aponta um artigo publicado pelo Wilson Center Brazil Institute, sediado em Washington, nos Estados Unidos. “Um estudo recente mostrou que as mulheres representam apenas 24% dos beneficiários de um subsídio do governo brasileiro concedido aos cientistas mais produtivos do país (a bolsa produtividade). A sub-representação em posições de liderança ainda persiste: as mulheres cientistas são apenas 14% da Academia Brasileira de Ciências”, complementa o texto.
Essa desigualdade se reflete, por exemplo, nas estatísticas de registros de patentes. Conforme levantamento do Capes, neste quesito a participação masculina segue superior à feminina, embora a diferença entre os grupos tenha diminuído. Em 2013, eles representavam 59,74% desse universo, enquanto elas, 40,26%. Já em 2019, 56,08% das patentes registradas tinham participação de homens, enquanto 43,92% tinham participação de mulheres.
Mundialmente, mulheres lideram minoria das pesquisas científicas
“Em todo o mundo, assim como no Brasil, percebemos uma tendência de mais mulheres ingressarem no ensino superior. Porém, essa presença não se reflete no segmento das carreiras científicas”, informa Fábio Eon, coordenador de Ciências Humanas e Sociais e Ciências Naturais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil. Ele ressalta que, segundo levantamentos da entidade, apenas 28% da pesquisa mundial é conduzida por elas. Diante desse paradoxo, a organização buscou respostas sobre o porquê de mais mulheres entrarem no universo científico, mas não se manterem nele. “Nos inquieta perceber que, embora tenham interesse, elas não sigam carreira, sobretudo em tecnologia, matemática e engenharia”, aponta.
Uma das hipóteses que ajudam a compreender esse fenômeno está relacionada à educação doméstica e formal. “Notamos que os pais não estimulam suas filhas a se desenvolverem nessas áreas. E, nas escolas, observamos que os materiais didáticos são inadequados, com cientistas sendo representados nas ilustrações e exemplos sempre como figuras masculinas, o que reforça o estereótipo de que esse é um espaço reservado aos homens”, avalia Eon.
E mesmo que elas consigam superar essa barreira inicial e consigam ingressar no ensino superior, outros desafios se impõem à construção de uma carreira mais sólida. “O assédio, moral e sexual, é um dos problemas”, constata o consultor da Unesco, situando que cada país possui uma realidade própria, havendo grande amplitude de fatores que esbarram e emperram o deslanchar da presença feminina na ciência. “Pesquisadoras asiáticas, por exemplo, reportam enfrentar um grande distanciamento em relação aos orientadores. Em outros países, como nos Estados Unidos, o empecilho é o excesso de competitividade, além de não serem incomuns os relatos de pesquisadores que percebem que seus orientadores estão se apropriando do trabalho intelectual delas para se promoverem”, destaca.
“Há, ainda, um hiato muito grande ligado à progressão na carreira, de forma que, mesmo avançando, mesmo estudando mais, elas ocupam menos cargos de chefia. Sem dúvida, essa falta de reconhecimento também leva ao desestímulo”, complementa. Como exemplo dessa realidade, Eon antecipou a O TEMPO dados que serão apresentados em abril, em um relatório da Unesco, segundo o qual apenas 4% das startups são dirigidas por mulheres. “Essa tendência também se reflete no Brasil. Por aqui, nas reitorias de universidades federais, menos de 30% são chefiadas por reitoras”, sinaliza.
Jornada múltipla das mulheres e ambiente hostil à parentalidade
Não surpreende a historiadora e cientista Regina Helena que, durante os períodos em lockdowns, que foram realidade em diversas cidades do mundo, o rendimento, sobretudo de pesquisadoras, tenha caído. Dados preliminares do projeto brasileiro Parent in Science demonstravam que, até maio de 2020, 52% das mulheres com filhos não concluíram seus artigos, contra 38% de homens. Trata-se de uma constatação que apenas reforça como as universidades são hostis à parentalidade.
“Antes da pandemia, já tínhamos esse problema. Eu mesma já passei por isso. À época da chegada dos meus dois filhos, eu perdi minha bolsa de produtividade CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), porque o meu rendimento caiu. O fato de ter que cuidar de duas crianças não pesou nas análises porque, infelizmente, no Brasil, a maternidade é vista como um problema na área da pesquisa e da educação. A gente não tem estrutura básica para ter filhos. As universidades não têm creches, não acolhem as crianças e não acolhem os horários das mães”, relata.
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“Claro que a maternidade em si não deveria ser algo limitante. Porém, sabemos que as mulheres desempenham jornadas duplas e até triplas. E a pandemia exacerbou isso”, observa Fábio Eon, citando que a Unesco lançou, em fevereiro, uma coletânea de artigos de mães cientistas narrando como tem sido vivenciar esse período.
Por outro lado, a atual emergência sanitária, de um certo aspecto, pôs em relevo a presença feminina na ciência. “Como estamos mais presentes na pesquisa em saúde, há mais mulheres sendo acionadas pela mídia para falar da Covid-19. Com isso, passamos a ter mais publicidade e reconhecimento. E, assim, com mais visibilidade, conseguimos conquistar mais espaços”, observa.